quinta-feira, setembro 06, 2012

E AÍ, COMEU



 Av. Suburbana, trânsito engarrafado, o Velho Roqueiro olha pela janela do ônibus. Não se sente à vontade com pessoas, mas gosta de olhar pra elas. Gosta, principalmente, de olhar para belas meninas. Lá na frente, pela calçada, vêm três. Conversam animadamente. Falam alto. O barulho do trânsito é ensurdecedor. O Velho ouve as meninas, apesar do barulho. Ouve algumas frases, as mais gritadas.
– Se a dona Belinha souber vai te capar.
O Velho não entendia muito essas conversas. Como poderia uma menina ser capada? Elas se aproximavam e o Velho não tirava os olhos delas. A filha da dona Belinha era a que mais o atraía. Atrevida, marrenta, belíssima, vulgar. Ao passar embaixo da janela do ônibus paralisado os olhares da Bela e do Velho se cruzaram. Ela se incomodou.
– O que você ta olhando, velho? Sou gostosa, mas não pro seu bico.
O Velho raciocinava rapidamente. Muito Ramones.
– Sua mãe, como vai?
– Minha mãe é o cara...
– Você é filha da Belinha, né não? Você tá a cara dela. Te vi pequenininha.
A marrenta se desconcertou.
– Dá um beijão nela. O Angus mandou. Ela vai se lembrar. Se não, diga pra ela que fevereiro de 1998, em Angra, foi o melhor mês de minha vida.
O Velho era atrevido. Chutou.
– Isabel foi a mulher de minha vida. Você é Isabel como ela?
A garota ia responder. O ônibus andou. O Velho ainda ouviu a amiga da marrenta: “Dona Belinha com aquela cara de santa. Aí, ela comeu esse velho em Angra.”

SEM FIRULAS



Não há um jeito de imaginar como será nosso dia. Podemos planejar, pensar nos lugares em que deveremos ir, estabelecer metas de horário: “às 11h em tal lugar; meio-dia almoço; no máximo, às 3h, estou na Tijuca; médico, às 4h; pego um táxi, 6h estou dentro de casa.” Mas aí vem o acaso e...
Descia a Serra na boleia de um amigo. Ia ao Recreio dos Bandeirantes. O amigo estava indignado com a morte de uma jovem senhora de 33 anos, feita refém por um imbecil e morta por outro imbecil, este de farda. Olha o acaso.
Ativista de um movimento de defesa de direitos gays, o Cara de Gazela, o afoito motorista não conseguia conter a ira. Eu, egoísta, preocupado com as navalhadas no percurso. Se com ele dominando os próprios sentidos já eram muitas, imagine desvairado. Mas fomos bem.
No Recreio, peguei um dinheiro de trabalho e titubeei um pouco sobre o que fazer. Pago minhas contas em um banco daqui ou deixo para fazê-lo na Tijuca? A prudência me encaminhou para a agência bancária. Que louca ideia a de levar dinheiro para a famigerada Tijuca.
Pagas as contas, perguntei a um funcionário do banco onde pegar ônibus para a Tijuca. Ia ao cardiologista. “Aí na frente do banco, o 304. Vai pra Rodoviária.” Saí, abri o jornal e fiquei com um olho no padre e outro na missa.
No centro da pista da Av. das Américas, o Ligeirão. Precisava recarregar meu Bilhete Único. Nada de 304. Resolvi fazer a recarga. Depois entraria no Ligeirão, desceria no Terminal Alvorada e de lá iria para o bairro dos comedores de sardinha e arrotadores de garoupa.
Atravessei a rua, encaminhei-me à estação Benvindo Novais a tempo de ver acontecer, exatamente no lugar em que estava, uma cena que é comum na Serra, mas inusitada no lugar onde paulistas se recreiam. Por aqui a turma gosta de explodir carros.
A cena: Um motoqueiro e seu garupa abordam outro motoqueiro e tiram-lhe a moto. O garupa deveria ter algum transtorno de falta de amor (TFA) e danou-se a atirar contra o nada. O dono da motoca que seria roubada já havia se pirulitado. E o garupa atirava, atirava... (que merda de arma era aquela com balas à vontade?). Tentou fazer a moto do escafedido andar e nada. Ficou contrariado, bateu os pezinhos, bicou a moto caída no chão, voltou à moto em que estava, abraçou carinhosamente o amiguinho e gritou: “Vamos, porra!” E mais tiros lançou em direção ao nada. As balas só encontraram paredes. Ainda bem.
Não pude deixar de pensar que se estivesse onde estivera 5 minutos antes, talvez minha pouca mobilidade e grande volume me condenassem. Ou, quem sabe?, uns pipocos vindo em minha direção me dessem nova velocidade. O acaso, de novo.
Entrei na estação, liguei pro amigo da carona a fim de tranquilizá-lo. O ateliê dele é ali perto. Depois de contar a história, ouvi a aguda voz: “Veinho, não faça isso comigo. Você sabe que te amo. Tome cuidado. Beijão.” Apreciei o carinho, mas sou das antigas, gosto de ser amado por mulheres. Não é preconceito, mas sacumé.
Claro que não fui pra Tijuca. Busquei a segurança da Serra e a familiaridade de companheiros sem firulas. 

segunda-feira, setembro 03, 2012

As belas irmãs Deschanel


O dia em que fui Bat Masterson




Em visita a família amiga, lá pelas tantas, alguém mencionou a morte, aos 90 anos, de Gene Barry. Na sala, quase todos nos lembramos do personagem que o ator viveu em série que fez muito sucesso aqui no Brasil, na década de 60: Bat Masterson.
A musiquinha da série foi cantada em coro, comentamos alguns aspectos do filme e mudamos de assunto, como ocorre nos bons papos sem compromisso.
À noite, já em casa, voltei a pensar no velho herói e me lembrei de um momento traumático de minha vida: o dia em que fui Bat Masterson.
Um carnaval qualquer do começo da década de 60, meu pai levou-me à matinê do Clube da Light, no Grajaú. Estava fantasiado de Bat Masterson. A fantasia era um sucesso entre a criançada. Tinha bengala (a minha foi feita na carpintaria da Projetil), cartola, colete, gravatinha borboleta e revólveres.
Bat Masterson, o da televisão, era canhoto e usava só um revólver. Ganhava as paradas mais no charme do que com as armas. Geralmente, resolvia as pendências com algumas bengaladas.
O Masterson do Clube da Light usava dois revólveres prateados, dispensava o paletó (concessão ao verão carioca) e era avesso a conflitos físicos. A bengala, então, era cenográfica.
O Clube da Light era reduto de uma elitezinha merdéu. Na década de 50, não era permitida a entrada de negros em suas folias. Nos anos 60, meu pai era da diretoria do clube (e negro), por isso era lá que pulávamos no Carnaval.
Na portaria, a funcionária desarmava os Ivanhoés, Vigilantes Rodoviários, Zorros e, desgraçadamente, Bat Mastersons. Tive confiscados meus revólveres e bengala. Criança fica aborrecida, irritada, chateada... Eu, precoce, fiquei foi mesmo puto da vida.
“No final, é só pegar de volta, filhinho”, falou a mocinha. “Filhinho é o caraio”, acho que pensei em dizer, mas não disse.
No salão, o roda pra lá roda pra cá dos bailes carnavalescos. Era muito criança para aproveitar a única coisa boa de bailes de carnaval, o ninguém é de ninguém, mas me divertia. Criança se diverte com pouca coisa.
Fim de baile, vamos à portaria recolher as armas. A mocinha já tinha caído fora. Meu pai gostava de um papo e nunca se apressava. Muita gente fora embora. Entre eles, um puto, filho de pai antissocial, que levou minhas pistolas.
O porteiro me apresentou dois revólveres mixurucas, pretos, fininhos. Gostaria de ter reagido com mais bravura, mas chorei, chorei muito, chorei de fazer escândalo. Meu pai pegou a bengala da mão do porteiro e me confortou: “Depois compro outros revólveres iguais aos antigos pra você”.
Nunca comprou, mas me deu muitos discos e livros. Acho que ganhei com a troca. Não tenho sangue frio para ser matador.

terça-feira, agosto 14, 2012

O rock merece respeito



Quando era menino lá em Barbacena, o mundo era dividido em dois blocos: comunistas e capitalistas. Havia terceiro, quarto e quinto mundos, mas serão desconsiderados, aqui. Voltemos. Comunistas e capitalistas comiam criancinhas. Estes, assadas e temperadas; aqueles, cruas, já que eram broncos, grosseiros, cruéis.
O mundo era mais simples (ou parecia). Comunistas eram ateus. Capitalistas dividiam-se por várias religiões, inclusive as que negavam a existência de Deus. Comunistas e capitalistas desejavam destruir-se mutuamente. Nunca tentaram, efetivamente, levar a cabo a missão de destruição por medo do revide, que seria fatal. Dizia-se, à época, que o armamento nuclear disponível era capaz de pulverizar o planeta. Comunistas ateus e capitalistas religiosos tinham, no entanto, um inimigo comum: o rock.
Comunistas vociferavam que o rock era instrumento de dominação guiado pelas forças burguesas. Os perversos capitalistas usariam o rock para difundir seus valores nefastos entre a cândida juventude vermelha. Era a trilha sonora da decadência moral, veneno mortal com intento de solapar a sociedade igualitária que seria, um dia, construída pelos sinistros. Não foi, sabemos.
Capitalistas religiosos, por sua vez, não davam tanto cartaz aos comunas. Enquanto estes saracoteavam ao som de marchas militares, jovens capitalistinhas rebolavam à batida do rock. Capitalistas apavoravam-se com a ameaça de dominação comunista, mas havia relativa liberdade de expressão nas democracias ocidentais. Religiosos atribuíam ao rock o poder de minar as resistências espirituais de seus pimpolhos.
O rock evoluiu de diversos ritmos, misturou-se com outros e produziu artistas tão diferentes entre si que é impossível entender como se agrupam sob o mesmo rótulo.
Raul Seixas, aqui no Brasil, cantou que o diabo era o pai do rock. Muitos creram nisso. Antes de Raulzito, líderes religiosos acreditaram que havia mesmo uma ligação íntima entre o Tinhoso e roqueiros. Não é difícil entender o porquê.
Ali embaixo, naquele país de mulheres bonitas e homens bizarros, a ditadura militar desestimulava o rock nacional. Cantado em inglês, tudo bem, ninguém entendia mesmo (não estranhe, meu jovem, no século passado, o inglês, pasme!, não era falado por toda a população). Aí, veio a Guerra das Malvinas. Rock portenho só em castelhano. Se o rock chegou à Argentina e fez a juventude de lá esquecer o tango e a cumbia, chegaria a qualquer lugar.
O rock surgiu nos Estados Unidos, no final da década de 40, começo da de 50, do século passado. Cruzamento de vários ritmos, era branco no rockabilly de Elvis Presley e negro no rhythm and blues de Chuck Berry (na minha linha do tempo Bill Halley não existe). Nasceu transgressor, domesticou-se, rebelou-se, conformou-se, morreu, renasceu.
Isso, no entanto, é passado. O tempo de se quebrar discos em igrejas evangélicas se foi. A paranoia de se ouvir discos em rotação invertida para descobrir mensagens do capeta ficou em uma época que não nos traz orgulho. Qualquer cantor evangélico (ou gospel, de acordo com as preferências atuais), atualmente, entoa rock sem constrangimento nem medo de parecer carnal.
O velho comunismo esvaneceu-se. Ruiu como prédio do centro do Rio. Os chineses, bastiões do comunismo, se adaptaram e logo chegarão a ser a primeira economia do mundo. Nem comunismo nem capitalismo: pragmatismo.
Heróis trágicos do rock que morreram por desconforto, inadequação e angústia diante da vida não são mais tão comuns. Kurt Cobain suicidou-se com um tiro na boca; Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Ian Curtis foram às últimas consequências bebendo e cheirando o que podiam e não podiam; Amy Winehouse afogou-se em uísque. Roqueiros não morrem mais por desespero. São como os novos comunistas: pragmáticos.
Ídolos de rock e empresários gananciosos não são bons exemplos. Não têm vida compatível com a que é considerada correta por humanos com quem vale a pena conviver. Quase ninguém tem, sejamos sinceros. A música de todos os gêneros é influenciada por vários elementos, inclusive satânicos.
O Black Sabbath, de Ozzy Osbourne e Tony Iommi, tinha o nome associado a rituais de feitiçaria e o fato de Osbourne gostar de morder morcegos de plástico incrementou a mitologia do grupo (aliás, ele diz à revista piauí que esse morcego vai acompanhá-lo na lápide); Jimmy Page, do Led Zeppelin, dizia-se bruxo; Sympathy for the devil, música dos Stones que saiu em Beggar’s banquet, perturbou bastante os cristãos. A verdade é que o público de rock gostava desta rebeldia inócua, típica da mente adolescente. Líderes de igrejas, em vez de agirem como adultos, comportaram-se como crianças. Surgiu, forte, o satanismo fashion. Oportunistas perceberam que dava para ganhar um dinheiro fazendo cara de mau e se dizendo seguidor do capiroto. Os mesmos oportunistas que, em nossos dias, perceberam ser muito lucrativo dizer-se cantor gospel.
O cantor evangélico do passado, além de não ganhar dinheiro, tinha a vida vigiada de perto. Qualquer vacilo e lá ia a “carreira” ladeira abaixo. Os cantores gospel de hoje são profissionais, para o bem e o mal.
Finalizando e, espero, amarrando tudo.
Ritmos e melodias não pertencem a nenhuma entidade. São nossos e podemos usá-los em qualquer lugar. Eu, 58 anos, estranho louvor com funque (funk é outra coisa), passinho, coreografia... Limitação minha. A idade, sacumé.
Letras também não pertencem a nenhuma entidade. São nossas e podemos usá-las em qualquer lugar, desde que guiados pelo bom senso. Não vou entoar funque bandido, misógino, preconceituoso nem no interior de meu cérebro.
O rock é um velho senhor com alguma vitalidade, mas sem o fogo do passado. Fez bem e mal para muita gente. Não foi ele o fator determinante de fracassos e sucessos. Também não pode ser responsabilizado pela queda do comunismo. Muito menos de desviar jovens crentes dos retos caminhos do Senhor. Responsáveis por nossos destinos somos nós mesmos. Sabemos o que devemos fazer. Se não o fazemos...

sábado, agosto 04, 2012

MENININHAS


Os homens andam por baixo. Dúvidas? Nas duas principais novelas em exibição, Cheias de charme e Avenida Brasil (as duas na TV Globo), não há personagens masculinos fortes. Sandro (Marcos Palmeira) é um malandro; Tufão (Murilo Benício), um bobão; Max (Marcello Novaes), um idiota inescrupuloso; Leleco (Marcos Caruso), um chato. Agora, as mulheres...
Admitamos: quando inventarem o sêmen sintético, os homens serão caçados nas ruas como gazelas. O que é desnecessário, a natureza descarta. Por enquanto, somos necessários para a reprodução, mas daqui a uns 50 anos, sei não.
Eu mesmo sempre achei mulheres mais interessantes do que homens. Nunca as entendi, no entanto, adoro tê-las por perto. Homens, de modo geral, são monotemáticos, mulheres estão sempre surpreendendo.
Vemos no cinema, na tevê e na vida real que mulheres não precisam mais de homens para alcançar prazer sexual. Brigitte Nielsen trocou Sylvester Stallone por outra mulher. Na época, um escândalo. Anne Heche separou-se de Steve Martin e foi viver com Ellen DeGeneres (mais tarde DeGeneres a deixou e ela quase morreu de desespero). Ninguém deu muita pelota pro assunto. Na pré-história, a mocinha não se orgulhava de perder a virgindade com qualquer zé-mané; hoje, ela fica profundamente constrangida de ser virgem aos 18 anos sem ter cedido a um zé-arruela qualquer.
Saudade não tem idade? Tem sim. Em minha adolescência (meados do século passado), lembro-me da dificuldade, em festinhas, de encontrar um par para pespegar um furtivo ósculo. Manhã fria de julho, garota bonitinha à minha frente, na fila da padaria, confidencia (força de expressão, todos na fila do pão ouvimos) à coleguinha: “Ficou com quantos, ontem, no aniversário da Zu?” A outra fofinha: “A festa tava meio caída. Só peguei quatro”. Vivi na época errada.
Meninas relatando experiências sexuais com outras meninas, muitas, ainda, afirmando que é só brincadeirinha, está se tornando comum. Neste momento, deveria fazer a ressalva de que não sou preconceituoso. Mentiria. Sou preconceituoso e de um outro tempo. Vago, qual zumbi, por esta terra estranha.
Pobres de nós, homens que gostamos de mulheres. Nosso fim chegou? Falta pouco, mas ainda não. Homens e mulheres foram criados para a completude. Deus assim nos fez.
Afirmei que tenho meus preconceitos. Todos nós temos. Luto com as amarras que me são impostas pela idade e procuro estar atento aos movimentos da vida, entretanto, percebo com alguma clareza a desvalorização do papel do homem.
Resistamos, não nos sintamos diminuídos e antes que comecemos a ser caçados como inúteis, mostremos que também podemos ser sensíveis, delicados, ternos, carinhosos, mimosos. Quase uma menininha.

sábado, junho 30, 2012

O cidadão



Ontem, no Recreio, entrei em um McDonalds e comprei uma torta de maçã para viagem. Atravessei a rua, entrei no BRT e extasiei-me no ônibus do futuro.
Desci no terminal Alvorada e embarquei no Del Castilho, via Linha Amarela. Sentei-me, abri o saco de papel e comi a torta de maçã. Não tinha onde descartar o lixo. Pensei em fazer o que já havia feito várias vezes: deixar o lixo por ali mesmo, mas... Rio + 20, crianças ecologicamente corretas, câmeras escondidas.
Desci em Del Castilho com o saco na mão (o de papel), procurei lixeiras e... Entrei no 943 (antigo 896) e, depois de curta mas acidentada viagem, desembarquei na Serra.
O lixo, comigo. Eu, cidadão.
Já dentro de casa, joguei o saquinho recreense na cesta de lixo da cozinha. Orgulhosão.
Rosangela chegou, bebeu um copo dágua, abriu o lixo e sacaneou: “Saquinho de McDonalds? E a dieta?”
Eu, cidadão. Cidadão babaca, mas cidadão.

segunda-feira, junho 18, 2012

EM BUSCA DA VERGONHA PERDIDA


Não sou saudosista, mas, aproximando-me da velhice, começo a sentir falta de algumas características que eram caras aos antigos.
Nelson Rodrigues dizia que havíamos perdido a capacidade de nos escandalizar. Hoje, perdemos a vergonha. Vergonha, só a de ter vergonha.
Nepotismo sempre houve no Brasil. No passado, entretanto, mesmo o político empregador de parentes mais descarado tinha um certo pudor. Evitava abrigar em seu gabinete, de uma tacada, mulher, filhos, cunhados, amante... Pego com a boca na botija, envergonhava-se, genuinamente. Não é assim em nossos dias. Flagrado, o sustentador da família à custa do nosso dinheirinho faz cara de ultrajado, arma biquinho de magoado e, candidamente, diz: “Não vejo problema em empregar meus queridos. Têm competência, são de confiança, devem ser punidos por serem meus parentes?”
A falta de vergonha, o despudor, o desejo desenfreado de ganhar dinheiro a qualquer custo criou uma geração sem noção de brio, ética, honestidade. Há bem pouco tempo foi presa uma mulher que participava de uma quadrilha que desviava dinheiro de remédios para pacientes terminais. A facínora morava em um apartamento avaliado em R$ 1 milhão. Sua aparência era a da titia simpática que faz torta de maçã pros sobrinhos.
Outro caso chamou minha atenção. Em repartição de um Detran qualquer todos roubavam. Todos, não. Havia um honesto. Filmou bandidos e bandidas, que faziam festa a cada real roubado dos contribuintes. De novo, os meliantes eram gente como a gente.
Fui chefiado por figuraça que tinha uma frase síntese, definidora da vida do “homem sagaz”, como ele gostava de dizer: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. Bochecha ainda se preocupava em deixar pirão para os que viessem depois. Hoje, a frase serve a muitos com pequena, mas vital alteração: “Farinha pouca, só o meu pirão”.
Se não temos vergonha, fazemos qualquer coisa. No passado, por humildade (ou falsa humildade), evitava-se, ao se escrever textos relatando realizações pessoais, a primeira pessoa do singular. O autor usava a primeira do plural (eu, particularmente, não gosto do recurso), lembrava-se de pessoas que o ajudaram e, se evangélico, concluía com o clichê: “a Deus toda honra e toda glória”.
Eu organizava um jornal evangélico. Antes de enviá-lo para a gráfica submetia-o à apreciação do chefe. Nunca estava bom. Meu líder era pastor. Vaidosíssimo, como quase todos os ungidos. Resolvi fazer o jogo dele e preparei uma edição de 16 páginas com 13 fotos do humilde servo. Ele adorou e eu pedi para sair.
Todos, se normais, somos vaidosos, mas ninguém precisa ser um Cristiano Ronaldo a se olhar nos telões da vida a todo momento.
Um apóstolo lusitano, proprietário de uma igreja familiar, gosta de publicar no jornal de sua comunidade as graduações, pós-graduações e doutorados que obteve na vida. Se vivesse dez vidas o gajo não conseguiria tantos títulos. Vaidade.
Outro jornal evangélico publicou edição comemorativa do Dia do Pastor. Nas páginas do semanário, obreiros que se destacaram ao longo da história do grupo religioso. Entre eles, faceiro, o atual diretor do jornal. Não há mais constrangimento com o autoelogio. E alguns cínicos ainda retrucam: “Se eu não me elogiar, quem elogiará?”
Este tipo de atitude é normalíssimo, hoje. Não só entre evangélicos. Há pavões umbandistas (já estive lá, sei como é), católicos, ateus.
Autoelogio e marketing pessoal são a mesma coisa. Ninguém tem tempo de ver suas qualidades serem reconhecidas. É mais seguro fazer propaganda de si mesmo. Vender-se como produtos. Há muitos trouxas para comprar produtos fajutos.
Quem faz amigos desinteressadamente? Buscam-se relacionamentos que poderão ser úteis no futuro. Não sei onde vamos parar. Salvo engano meu (e me engano muito), seria bom se parássemos, refletíssemos e buscássemos a vergonha perdida. Nós que nos dizemos cristãos, pelo menos.

terça-feira, junho 12, 2012

QUE FATOS?



A leitura de jornais e revistas já não nos permite ter visão clara de um fato. “Contra fatos não há argumentos”, diziam os antigos. Que fatos? Peguemos como exemplo a história de Gilmar Mendes e Lula. Em VEJA, Lula é o vilão e Mendes, o mocinho. CARTA CAPITAL apresenta Mendes como o pilantra e Lula é o estadista sério. As duas apresentam argumentos para defender suas teses. Obviamente, qualquer fato (ou versão de fato) que surgir para contrariar as teses defendidas será escamoteado.
Eu, leitor, decidi. Não assino mais nenhuma revista semanal (a internet me fornece informação suficiente). Jornal, só compro na banca. No Rio de Janeiro, O Globo, por absoluta falta de opção.
Sempre gosto de tomar partido. Vou fazê-lo por simpatia.
Não vou com os cornos do José Dirceu. Sou contra ele.
Tenho ojeriza a Lula e Gilmar Mendes. Quero que os dois se fodam.
Entre o japonês e a loura, fico com a loura. Japoneses são irritantes.
Fatos não interessam a mais ninguém. São manipulados, segundo o interesse de quem os divulga. Noticiários, no passado, preocupavam-se em pelo menos parecer isentos. Hoje, jornais e revistas são extensos editoriais.

domingo, junho 10, 2012

HISTERIA & FLAGELO


Há muitos anos, o apresentador Nei Gonçalves Dias recebeu a então atriz infantil Natália Lage em seu programa de TV. Recordo-me que, em determinado momento, ele a pôs sentada sobre a perna e, naturalmente, lhe fez algumas perguntas. Natália tinha 10, 11 anos. Hoje, isso seria impensável.
Os tempos mudaram. Sempre fico em dúvida se para melhor ou pior. Não me aproximo de crianças. Converso com meninos e meninas quando eles tomam a iniciativa e sempre mantenho distância. Paranoia? Pode ser.
Depois das declarações de Xuxa ao Fantástico e a inevitável repercussão do que disse (“Fui abusada algumas vezes quando criança.”), mais do que dobrou o número de denúncias de casos de abuso sexual infantil o que é bom para lançar luz sobre homens e mulheres abusadores. Abusadores são próximos das crianças de que se aproveitam. Isso é fato comprovado por pesquisas sérias. (Revista VEJA: 97% dos casos o agressor convive com a criança; em 38% dos casos os pais são os abusadores, em 29%, os padrastos; 64% das vítimas são meninas; a maioria sofre abuso entre 6 e 10 anos; a violência persiste, em média, por 1 ano; 77% das crianças ficam severamente traumatizadas.)
O grande perigo que vejo é um gesto de carinho ser confundido com tentativa de abuso. Acredite, acontece. Crianças são, quase sempre, carinhosas. Aproximam-se, abraçam, beijam. Crianças latinas são assim. Quando acontece comigo procuro, delicadamente, afastar a criança. Não serei eu que vou destruir a espontaneidade da criança. Destruir os filhos é função dos pais.
O que o adulto deve fazer é evitar qualquer situação que o deixe à mercê de interpretações equivocadas. Estamos em momento de quase histeria. Eu mesmo já me peguei olhando com desconfiança para homens muito carinhosos com seus filhos. O abuso de crianças é um crime odioso, mas o medo de pais demonstrarem amor por seus filhos, temendo ser malcompreendidos, terá consequências desastrosas.
É inteligente adultos só se aproximarem de crianças sob a supervisão de seus pais. Os pais não devem se furtar de oferecerem a seus filhos muito carinho. São raríssimos os casos de a criança ser abusada por pai e mãe, simultaneamente. Basta, então, os pais prestarem bastante atenção em seus filhos e em seu cônjuge para perceberem qualquer situação estranha.
Um caso que tomei conhecimento pelo Profissão: repórter, da Globo: A criança, em uma festa, apresenta um rapaz à mãe. O rapaz, professor universitário, se aproxima da mulher e os dois se envolvem “romanticamente”. Ele vai viver com ela e a filha. A mulher confia tanto nele que deixa a filha, várias vezes, sozinha com o cara. A menina dorme na cama do professor. A mãe sabia e achava natural. Quando a filha contou à mãe o que estava acontecendo, a mulher se desesperou.
O abuso de crianças é um flagelo, mas reagir histericamente a esses abusos pode ser pior. É uma cena linda ver um pai cobrir de beijos sua filha querida. Uma cena que, no futuro, talvez não vejamos mais.

sexta-feira, junho 08, 2012

ÁRVORES QUE GRITAM

Na década de 90, eu frequentava nobres residências cariocas. Em visita ao Príncipe do Jardim América, fui apresentado a um grupo de rock chamado Screaming Trees. O nababo pediu à criadagem que me servisse um farto banquete, enquanto ouvíamos o grupo na potente aparelhagem de som, que talvez não tivesse equivalente no Brasil. Saí da mansão do milionário com duas fitas cassetes com a música do Screaming Trees gravada.
Lembro-me disso porque ouço, agora, uns 20 anos depois, o novo cd de Mark Lanegan, Blues Funeral. Lanegan era a voz do Screaming. Nesses anos que se passaram adquiri toda a discografia do Screaming, quatro solos de Lanegan, três Lanegan/Isobel Campbell e muitas colaborações de Lanegan com diversos artistas em vários discos diferentes.
Uma tarde agradabilíssima com o bom amigo da alta roda carioca me fez conhecer um dos cantores que mais aprecio.

O FALADOR



18ºC. Frio na Serra. Sensação térmica por volta dos 10ºC. Ventos afiados. Cheguei na padaria lanhado. Fila grande, televisão ligada. A apresentadora lembrava o começo da campanha de vacinação contra a gripe. Um vizinho, agitadíssimo, berrava:
- Esse negócio de vacinação é pros pilantras meterem a mão.
Dois ou três prestaram atenção. O falador viu que tinha plateia, prosseguiu:
- A gente fica resfriado uma, duas vezes por ano, no máximo. Conheço meia-dúzia que tomou a vacina e ficou gripado. Febrão, cama. Isso é roubo. Aliás, aqui no Brasil é tudo roubo.
Uma senhora resolveu discordar:
- Também não é assim. Me vacinei ano passado e não me gripei. E, francamente, há muita corrupção no Brasil, mas nem todo mundo é corrupto.
O cara ganhou força:
- D. Olga, a senhora é uma pessoa boa, inocente, religiosíssima... Essa vacina é, sim, jogada de políticos e todos os políticos saqueiam o país. Quem entra quer se dar bem.
D. Olga, a senhora não tão inocente, aproveitou a bola levantada e cortou:
- Gerson, você já saiu candidato a vereador três vezes.
O indignado bambeou, mas não caiu:
- A senhora me conhece há muitos anos. Não pode duvidar de minha honestidade.
D. Olga era firmeza:
- Você disse que os que querem entrar para a política são corruptos. Você quer entrar para a política. Você é corrupto.
Antes de o ex-futuro político dizer qualquer coisa, um gaiato mandou lá do fim da fila:
- Gerson, reivindique seu direito constitucional de ficar calado. A coisa tá pegando pra você.
Gerson dirigiu-se pro fim da fila, pensei que pra tomar satisfações com o engraçadinho, mas, que nada, pegou foi o rumo de casa, pensando que, certamente, em algumas ocasiões o melhor que se faz é não falar.

domingo, maio 20, 2012

OLHOS

PERDÃO

Em 2006, escrevi o texto abaixo em post deste blog. O tempo passou e preciso dizer o que direi: Perdão, Dunga.

O GÊNIO E O CAPIAU
Atura-se um chefe incompetente e ignorante porque a alternativa, o desemprego, é pior.
Há um jogador de futebol que me faz sentar diante da tv para vê-lo jogar: Ronaldinho Gaúcho.Dunga, o medíocre, resolveu barrá-lo na Seleção. Os especialistas dizem que é pra mostrar quem manda no pedaço.Os mesmos especialistas afirmam que Gaúcho, na Seleção, não rende o mesmo que no Barcelona.Ronaldinho Gaúcho não precisa agüentar chefe medíocre.Não entendo por que não pede para que o esqueçam na Seleção e joga só pelo Barcelona, até o final de sua carreira.O artista deve apresentar-se para a platéia que quer assisti-lo.Deixe o capiau de gravata no bolso e o craque ucraniano dominarem a modalidade esportiva que tem semelhança com o futebol, mas futebol não é.

quinta-feira, abril 26, 2012

A GOSTOSA DO BAIRRO



Alfredo Medeiros chegara ao Bairro há muitos anos. Aos 53, era casado com Lúcia, morena constantemente homenageada pela garotada do Bairro. Não havia mulher mais gostosa do que ela. Não pra nós. Quarenta e poucos anos, enlouquecia os espadas. Era atração turística.
Estava com Alfredo há 23 anos, casada há 21. Não sentia mais por ele qualquer tipo de paixão. Movia-lhe o volúvel coração, muito de vez em quando, carinho e respeito. Não tinha caído no mundo por causa das filhas. Para sacudir a rotina, de tempos em tempos, se ligava em alguém. Namorava, saía, se apaixonava, trepava, até que enjoava e voltava a viver seu papel de esposa. Alfredo, corno manso, sabia das aventuras da mulher, mas se fazia de besta.
Alfredo conheceu Lúcia quando estava no esplendor da beleza. (Se ela, no passado, conhecera o esplendor, em que estado vivia agora. Como aquela deusa pudera ter sido mais bela?)
Alfredo, que nunca fora chegado a escolas de samba, atendeu o convite de uns amigos e foi ao ensaio da agremiação do Bairro. Tinha ganhado uma bolada no jogo do bicho e estava, qual um Romário, bancando a mesa dos deitões. Lúcia chegou com um grupo. Não foi por dinheiro que ela se aproximou dele. Ele logo disse que era motorista de ônibus e que a muita grana era só aquela noite. Ela confessou depois a ele que, naquela noite, o que a impressionara fora o pouco apego dele ao dinheiro. Alfredo convidou-a para irem a um cinema, no dia seguinte. Ainda ouviu um moleque sacaneando sua rainha: “Vai sair com o coroa?” Saíram aquela e muitas outras vezes. Um ano depois estavam casados.
Quando Lúcia viu Alfredo pela primeira vez não se impressionou. Estava com Manelzinho, o fodão do Bairro. Era alucinada por ele. A homarada não entendia o segredo que Manelzinho escondia. O velho humorista Zé Trindade diria: “Tem borogodó”. E tinha mesmo. Já passara o taco nas mais cobiçadas buças do lugar. E parecia que o comilão sabia que ia morrer cedo. Queria todas, ao mesmo tempo. Até que um dia um marido pouco afeito a ornamentos o desencarnou à porrada. Mas isto é outra história. O que nos interessa é que Lúcia estava de quatro pelo cara, mas tinha dignidade. Cansou-se das chifradas. Sentou-se à mesa, começou o papo com Alfredo e logo estava aceitando convite para ir ao cinema com o motorista.
Manelzinho era um livre trepador, estava pouco preocupado com exclusividade, entendia que a qualquer momento teria a morena de volta. Insistiu, cercou, atacou, mas nossa rainha resistiu. Não sem esforço, porque louquinha para dar pro filho da puta ela estava, mas Alfredo era tão gente boa, a tratava com tanta consideração. Não merecia que ela o sacaneasse. Não com o galinha do Manelzinho. Foi fiel por cinco anos. Quando soube do assassinato de Manelzinho, sentiu-se livre para experimentar outros cacetes. E experimentou.

terça-feira, abril 24, 2012

VOLANTE DE CONTENÇÃO




Aos 22 anos, tenho a sensação de ter vivido uma vida inteira. Uma vida que não queria para mim. Nasci aqui no Bairro, na Rua de Baixo. Desde moleque fui muito popular. Jogava pra cacete. Ainda jogo. Clássico, diziam os coroas que me viam no campinho, na rua. Era volante. Volante de contenção. Os expertos exigiam que fosse meia. Não fiquei no Botafogo por causa disso: o técnico queria que jogasse mais avançado. Sou volante de contenção, cabeça de área.
A beleza do futebol é o desarme. É tirar o pão da boca. É ver o babaca do atacante achar que vai meter na rede e você, na moral, roubar-lhe a bola. A diferença entre mim e os manés é que eu não só tirava a bola como dava seguimento à jogada.
O desarme é jogada de excelência quando seguido por uma ligação rápida com o ataque. Meu ídolo no futebol jamais chegou a um time grande, por diversos motivos, o mais grave deles: o alcoolismo. Laudelino entornava. Era um Clodoaldo mamado. Em um jogo no campo do Atlas, perto dos 40 anos, magérrimo, o vi fazer coisas pelo Polígono, seu time, que, puta que pariu! Minha mãe, que me dava a maior força, não entendia minha admiração: “Seu ídolo é um cachaceiro”. Bom, mãe não entende porra nenhuma de futebol.
Sempre tive princípios. Sonhei jogar pelo meu Botafogo a vida toda. O dinheiro que ganharia no clube seria mais do que suficiente. Volante, no Botafogo, e casado com Marivone. Não precisava de mais nada na vida. Tomei na bunda.
Meu casamento com Marivone acabou muito mais rapidamente do que pensei. Se fosse um cara mais flexível, aceitaria as desculpas dela. Ela teve razão em me cornear, mas homem não costuma aceitar essas paradas. Ainda mais que a vadia era a maior rata de igreja. Ela veio com aqueles papinhos de a carne é fraca, estava fragilizada, eu não dava atenção, só pensava em trabalhar. A gente estava num período difícil, mas sou cara das antigas. Essas coisas não se perdoam. Eu, não.
Conheci Marivone, eu com 15 e ela, 13 anos. Foi a primeira mulher que beijei. Nem digo comer, é beijar, mesmo. Caraio, tinha uma pá de mina querendo me dar e eu nunca tive momento de fraqueza, crise. Acho que é por isso que não perdoo. Volante de contenção é foda.
Aos 16, transamos. Tudo cercado do maior cuidado. Foi a época que deixei o Botafogo. Só pensava em Marivone. Sentia um ciúme louco dela. E os caras cercavam sem piedade. Ela era linda. Era, não: é.
O técnico sempre me dizendo: “Você é habilidoso demais pra jogar aí atrás”. Um porrão de empresários na minha cola. Minha mãe embarreirando. Treino físico. Corre pra cá, corre pra lá. Adorava futebol, mas resolvi que não queria ser profissional. Burrada de moleque. Naquela época eu queria Marivone, que também me queria.
O pai dela me arranjou um bico na empresa em que ele trabalhava. Aos 19, era motorista de ônibus. Marivone deu a ideia: “Vamos casar, depois as coisas melhoram”. Casamos, mas nada melhorou.

terça-feira, março 27, 2012

CHICO ANYSIO




Chico Anysio foi um gênio.
Aqui de longe, vejo um vacilo na carreira dele. Em determinado momento, ele poderia ter dado um pé no rabo da Globo e partido em busca de novos rumos. Ficou por lá, mesmo esperneando, e o guardaram em uma geladeira tríplex. Deve ter sido duro para ele ter seu humor chamado de velho em contraposição ao “jovem” humor da turma do Casseta. (Alguém, siceramente, acha graça no pessoal do Casseta & Planeta?) Mas ele teve escolha.
Depois de morto, a Globo faz a presepada de sempre: homenagens, homenagens, homenagens. Trata bem dois defuntos (Renato Aragão e Xuxa) e largou de mão um extraclasse que só morreu por esses dias.
E, por favor, não digam que Chico Anysio foi o Chaplin brasileiro. Colonizados, Chico foi muito maior.
Azar dele se comunicar em Português. 

segunda-feira, março 26, 2012

BOM HOMEM


- Jamais esperaria ver você por aqui.
- Por que não? Nunca fomos melhores amigos, mas nos relacionávamos amistosamente.
- Já estou preso há três anos. Nunca recebi visitas. Nem amigos, nem parentes... Ninguém.
- Portinho, o que você fez causou horror no bairro. Ninguém ganha popularidade estuprando uma menina de 14 anos. Ao sair daqui, nem sonhe em aparecer por lá. Tem gente que quer e vai te matar, se tiver chance.
- Aqui dentro também estou jurado. Gente que matou três, quatro; ladrões cruéis; parricidas e matricidas... Todos me querem. Sou a escória. Eu também me acho um merda, mas não me deixo matar.
- Por que você fez o que fez?
- Sei lá. Às vezes, acho que foi doideira. Achei que ela queria dar pra mim. O jeito que  me olhava. Toda hora ia lá em casa. Em vez de falar com a Zildinha, ficava de papo furado comigo. Os namoradinhos, a escola... Porra, e eu com isso? Aqueles olhos. Maior coxão. Corpaço de mulher. Eu evitava ficar perto dela.
- Era amiga de sua filha. Não tem pai, viu em você a figura paterna. O que você fez foi monstruoso.
- Pode até ser, mas eu estava com a maior tara nela. E pensei que ela quisesse jogo. Lembra que nos papos no boteco os caras diziam que tem uma porção de menina que gosta de homens mais velhos... Experiência, sacumé.
- Sua família teve de sair do bairro, tá sabendo? Começou uma conversa de que você violentava sua filha, com a conivência da Glorinha.
- Elas não querem saber de mim com razão. Nunca toquei em minha filha. Glorinha me escalpelaria se eu fizesse isso. Sabe o que mais? Casei com a Glorinha com 22 anos, tenho 44, jamais a traí. A vida inteira me mantive íntegro. Minutos de desvario me desgraçaram e à minha família.
- Portinho, todo mundo tinha a maior consideração por você. A Glorinha é uma mulher bonita, amorosa, todo mundo via. Por que você fez essa merda?
- Amílcar, de repente, cri que aquela menina queria alguma coisa comigo. Impossível uma menina querer transar com um cara mais velho? Uma vez estávamos no boteco: eu, você e o Barros. Você, Amílcar, me disse que em uma ocasião estava tomando umas cervejas no Bambu, na Av. Brasil. Uma menina se aproximou e te ofereceu um programa. Lembra que você falou: "Portinho, o bar estava cheio de garotos e ela veio se oferecer pra mim". Quantos anos tinha a menina, Amílcar? Você me disse, uns 13, 14. E ela escolheu você.
- Portinho, era uma prostituta.
- Cara, não estou me justificando. Vocês saíram do bar e foram para a casa dela. Refresque a memória. Recorda seu constrangimento de passar pela sala da casa dela, com pai, mãe e cachorro vendo televisão? Você foi trepar com a filha deles no quarto ao lado, parede fina de madeira. Você e o Barros gargalharam com a história. O Barros mesmo só pegava menininha.
- Portinho, prostitutas.
- O Barros comia a sobrinha de 16 anos. A mulher dele nunca soube.
- Portinho, foi consensual. A menina nem virgem era mais.
- Eu achei que a menina me queria. Endoidei.
- Portinho, estou me arrependendo de ter vindo.
- Eu, você e Barros somos três filhos da puta. Irônico é que eu, o único que admite, estou enjaulado.
- Você forçou a menina.
- Então, usei o método errado?
- Eu paguei, o Barros seduziu, você estuprou. Não percebe a diferença?
- Não, Amílcar. Somos homens feitos. Elas são meninas. Não quero duvidar da lógica de seu raciocínio. No fundo, sempre sonhei em ser como você e o Barros: estúpido, alienado, egoísta, escroto. Vocês vivem a vida. Fazem merda em cima de merda e ainda têm coragem de meter o dedo na cara dos outros. Mesmo invejando a falta de escrúpulos de vocês, me batia um orgulho de jamais, conscientemente, ter prejudicado alguém. Aí aparece essa menina, eu faço essa merda e descubro que sempre vai me faltar alguma coisa para ser como vocês.

sábado, março 10, 2012

MOEBIUS


A ESPOSA SUBMISSA


No consultório médico lotado, a mãe pede à filha.
- Ligue pro seu pai, pergunte onde ele está trabalhando, hoje.
- Pai, em que escritório o senhor está? Na Rio Branco?
- ...
- A mãe que perguntou. Vou passar o telefone pra ela.
- Oi, amor. Não, querido, não estou pedindo a Natália pra ligar pra você pra te vigiar.
- ...
- Eu estou aqui pertinho, no consultório da drª Lélia. De repente, poderíamos voltar com você.
- ...
- Tudo bem, querido, vou desligar. Não, não faço mais isso, mas não foi pra te vigiar.
Nós, os outros 30 pacientes da célebre oftalmologista, comprimidos na sala, fingimos que não percebemos a esculachada tomada pela madame. Ela, constrangida, se levantou, pegou a filha pela mão e foi embora.

Cariocas falam demais


Carioca fala no celular, em público, como se estivesse em casa, sozinho.
Ônibus cheio, figuraça em pé:
– Mô, to com maior saudade... Liguei pra você mais cedo... Ah, na hora que você ligou de volta não dava pra atender... Fiquei fazendo hora aqui pela Tijuca, só pra te ligar... Quero você, agora... Vou descer do ônibus... Seu marido já foi pra pelada?... Me espere nua.
Eu e os outros passageiros ficamos sem saber qual das peladas foi mais animada.

(Recolhido dentro do 636, em abril de 2002)

domingo, fevereiro 12, 2012

O PULGÃO



Como dizem os boleiros: “A vida é uma caixinha de surpresas”. E é mesmo.
Encontrei um conhecido na Saraiva, papeamos rapidamente e ele me convidou para um café. Mal sentamos e ele começou a discorrer sobre os mais variados temas: Império Romano, A juventude de Hitler, Mona Lisa, Revolução Industrial, presídios de segurança máxima e outras porrocas. Fiquei pasmo. Aquele cara na minha frente só falava de futebol, mais especificamente, sobre o Vasco. Tinha horror a ler qualquer coisa. De onde viera aquele monte de informação?
Animei-me. Mandei um tema: o rigoroso inverno europeu. Ele me confessou que vira alguma coisa nos noticiários, mas pouco sabia. “E a greve de policiais e bombeiros, você é contra ou a favor?” “Greve, que greve?”, rebateu o desinformado. Fui pro outro lado do mundo. “E a China, hein?” Ele despertou. “Semana que vem tem um documentário no Discovery. Não perderei.”
Ao ganhar novo alento, o colega retomou o controle da prosa e me explicou em detalhes como vive o pulgão dos pampas. Deve ter visto isso no Animal Planet.

sábado, fevereiro 11, 2012

OTITANDO


Não quero conflituar com você. Lembre-se que foi você que estartou esta discussão. Eu, em momento algum, afirmei que sua relação com a Dani estava colapsada. Ela me procurou, sim. Me disse que estava com borboletas no estômago. Tudo por causa do novo emprego, a nova função. Enquanto manicure, ela sentia-se segura, mas, agora, assumindo a vaga da designer de unhas, a insegurança bateu. Esse email que você printou e está me mostrando não revela nada diferente do que falei até o momento. Dani é uma mulher diferenciada, uma guerreira e ama você. O meu agir com ela tem sido sempre dentro do maior respeito. Somos amigos e só abdicarei deste status se ela assim o desejar.
Amado, se você continuar com esse ciúme, vai perder a mulher. Estar emocionalmente ligada a você não tem agregado valor à vida dela. Dani é dona de inteligência emocional formidável.
Veja bem, amado, considere o que lhe digo. A nível de comemorabilidade, este momento de promoção profissional pelo qual ela passou era para ser vivido com você, no entanto, ela me chamou para chorar pitangas. Examine-se, procure perceber o seu sentir. Faça isso, rapidamente. Foque no que importa, sem descuidar-se dos detalhes. Ela o ama, mas muitas vezes só o amor não basta. O amor constrói.
Amado, espero ter esclarecido tudo. Vou nessa. Um beijo no coração. Preciso passar na costureira pra pegar minha fantasia. Este ano sapucarei. 


sexta-feira, fevereiro 03, 2012

COISA BONITA DE SE VER - Aristazabal Hawkes, baixista do Guillemots


GOSTO DE DINHEIRO, MAS...


Gosto de dinheiro.
A vida toda, sempre tive muito pouco. Faltou-me disposição e vontade para fazer fortuna. Estranho, mas não condeno, jovens que sonham acumular o primeiro milhão. Perto dos 60 anos, gostaria de ter sido menos perdulário ao longo da vida.
Gosto de dinheiro.
Muitos gostam. A maioria venera. E os que idolatram o dinheiro e a vida confortável que ele proporciona fazem coisas que, caraio, fico pasmo.
Gosto de dinheiro, mas afirmo: não teria coragem de desviar remédios de pacientes terminais para ter bom apartamento, carro de luxo, vida mansa. O que fazer com criminosos que não têm o menor escrúpulo em cometer esse tipo de atrocidade?
Neste caso do desvio dos remédios para pacientes com câncer, os envolvidos são um bandido de almanaque (preso e chefiando os cúmplices do xadrez), dois ou três marginais de carreira e uma dezena de gente como a gente. Aliás, como a gente não. Quero acreditar que sou melhor do que isso.

quinta-feira, fevereiro 02, 2012


O ALBATROZ
Charles Baudelaire

Às vezes, por prazer, os marinheiros 
Pegam um albatroz, essa imensa ave dos mares, 
Que acompanha, indolente parceiro de viagem, 
O navio a singrar pelos golfos. 

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés, 
O monarca do azul, canhestro e envergonhado, 
Deixa pender, como um par de remos junto aos pés, 
As asas de um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio caído em desgraça 
Tão fraco e desajeitado, até mesmo cômico! 
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça, 
Outro, a coxear, imita o enfermo que outrora voava!

O Poeta é como o príncipe da altura 
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar; 
Exilado no chão, em meio à multidão obscura, 
As asas gigantes impedem-no de andar.

sábado, janeiro 28, 2012

MULHER & FILHOS




- É seu filho, do outro lado da rua?
- É. Tá grandão, né.
- Acho que não te viu.
- Fingiu que não viu.
- É a idade.
- Somos estranhos um ao outro. Ele não gosta de mim. Acho que não gosto dele.
- Seu filho, cara. É antinatural.
- Você tem três?
- Amo todos eles. Dou minha vida por meus filhos.
- Seu mais velho tem uns dez?
- Onze, nove e oito. Sou muito parceiro dos meus garotos.
- Sempre fui mais chegado a minha menina. Com o garoto, até ali pelos 12 era legal. Depois, sei lá.
- E com sua filha, você se dá bem?
- Não mais.
- Então, o problema é você.
- Mano, a vida é complicada. Não tem sentido, lógica. Bom provedor, sempre fui. A mulher é dondoca. Queria casar. Casamos. O que ela quis, dei. Sempre atendi a família. Fiz cursos para pais, frequentei terapia de casais quando vivemos uma crise. Trabalhava muito, mas chegava cedo em casa. Procurava acompanhar a vida estudantil das crianças. Às vezes, ficávamos até tarde papeando. Víamos TV juntos, íamos a cinema no fim de semana, jantávamos fora. Amava a mulher, os filhos. Sempre valorizei-a. Nunca a corneei. Dividi tarefas, cuidei da casa sempre que ela precisou. Até a igreja ia com ela. “É importante, querido, que os meninos temam a Deus”, ela dizia.
- Um bom marido?
- Mano, acho que fui. Marido de manual.
- Porra, o que aconteceu?
- Não tenho a menor ideia. De repente, meus filhos não conversavam mais comigo, recusavam-se a sair nos fins de semana. Tudo o que eu dizia era bobagem. “Pai, isso não tem nada a ver”, retrucavam sempre, com ar de desprezo. Mais pra frente nem se davam ao trabalho de me responder. A mulher se bandeou pro lado deles. Não queria mais sair, diálogo quase zero, sexo automático.
- Cara, me desculpe, mas deve estar faltando elemento neste seu relato. Algo desencadeou a série de situações que você me relatou.
- Deve ter acontecido. Jamais descobri o que foi. Busquei o diálogo, procurei ajuda profissional, recebi indiferença de volta.
- O que você vai fazer?
- Já fiz. Há dois anos. Desisti. Aos 42, larguei tudo. Reuni a família e informei que ia embora. A mulher ameaçou espernear. Tranquilizei-a. Avisei que sairia com a roupa do corpo e daria a ela uma boa pensão. Tive a impressão de ver tristeza no rosto da menina. Mas foi só impressão. Sustento os três e não quero saber deles nunca mais.
- Por isso seu filho passou batido.
- Vivo outra vida. Casei, serei pai, novamente.
- É não errar de novo.
- Não errei. Não mais do que erram todos os pais. A nova mulher tem temperamento diferente. Estuda, trabalha, sabe do mundo. A criança, criarei como fiz com os outros. Vou curti-la até os 11, 12... Depois, é loteria.