quinta-feira, março 12, 2020

Não fiz muitas amizades durante a vida. As que fiz são sólidas.
Lembrei-me de um amigaço, já falecido, ouvindo um disco.
Beniel era uma figuraça. Tínhamos um traço comum: éramos hostis, pouco sociais. Quando começamos a trabalhar juntos em uma sala, pensei que logo sairíamos na porrada. Nunca nos desentendemos.
Na época, continuava a sofrer do mal que me afligia e me aflige até hoje: dureza crônica. Ganhava pouco e gastava muito.
Beniel era o oposto. Ganhava pouco e não gastava nada. Ele me dizia que precisava ter dinheiro no banco para se sentir seguro.
Eu, empreendedor, vi a oportunidade e propus a ele que criássemos o FEAM (Fundo Evangélico de Assistência Mútua). Ele entrava com o dinheiro e eu e outro amigo, Mário Couto, seríamos os clientes.
Todas as vezes que eu precisava de dinheiro nos encontrávamos no Méier, em uma agência do Santander. Ele entrava, pegava o dinheiro, passava pra mim, sorrateiramente, como se fôssemos meliantes em uma transação escusa e, então,  entrávamos em um boteco e comíamos uns pastéis.
Numa dessas vezes, depois do lanche, ia pra casa quando vi uma banquinha, na frente de um jornaleiro, vendendo uns cds. Saí de lá com Dosage, do Collective Soul. Gostei muito do disco. Todas as vezes que o ouço lembro-me de Beniel.
Há uns dias puxei o disco no Spotify. De repente, estava chorando. Muito.
Velho chora à toa, mas desta vez pelo menos foram justificadas, as minhas lágrimas.
Nos últimos dias de Beniel, tinha perdido o contato com ele. Foi morar em Magé, meio isolado. Um câncer de próstata o matou.
Soube da morte dele pelo irmão. Liguei pra saber dele e tive a notícia.
Éramos totalmente diferentes um do outro, mas nos amávamos. (Espero que onde quer que ele esteja não leia isso. Não me perdoaria a pieguice.)
Era um cara especial, mas creio que poucos perceberam isso. É nosso destino.

quarta-feira, março 11, 2020

CASCATA

"Click bait é uma tática usada na Internet para gerar tráfego online por meio de conteúdos enganosos ou sensacionalistas. Também chamado de 'caça-clique', esse termo se refere também à quebra de expectativa por parte do usuário que foi 'fisgado' por essa isca de cliques."
Youtubers adoram click bait. É o que atrai a maioria dos visualizadores da plataforma. Acredito que depois de vista a manchete cascateira, poucos assistem ao vídeo até o final para perceber se o título casa com o que é dito.
Outro truque barato usado no Youtube é o da falsa lacração. "Fulano deu uma invertida em Sicrano". Você vê o vídeo e percebe que a fala de seu herói está totalmente descontextualizada. Fala editada. O antes e o depois das palavras do seu idolatrado não são ouvidos. Mas você quer acreditar que seu guia deu mesmo uma invertida em seu oponente.
O texto precisa de contexto. O antes e o depois. O por que foi dito. Extrair uma porção do que foi dito não significa que o todo equivale à parte.
A informação que nos chega pela internet precisa ser checada com cuidado. De preferência em mais de uma fonte.
Um meme muito bom apresentava Walter White, professor de química, pai de dois filhos, doente com câncer terminal. O meme era pra ser compartilhado. Havia pedido de oração e de um amém. O meme circulou por várias redes sociais. Muitos se emocionaram com Walter White. Diante da foto do condenado, a piedade. Walter White, no entanto, era um personagem de ficção. A estrela de Breaking Bad.
Revistas impressas não costumam usar desses subterfúgios. Até porque, em uma revista impressa, esse expediente é mais complicado de ser utilizado. Impossível não é.
O click bait não foi inventado agora.
Na década de 1960 do século passado, uma manchete em um jornal mestre em títulos pilantras, a Gazeta de Notícias, fez com que a edição daquele dia do jornaleco esgotasse mas bancas: "Cachorro fez mal a moça". O cachorro, claro, era um hot dog.
A Última Hora, na década de 1970, inventou um personagem: o Mão Branca. Esquadrões da morte matavam e a UH faturava muito com a invenção do Mão Branca. Esse acompanhei de perto porque trabalhava no jornal.
O Mão Branca vendeu muito jornal. Vendeu tanto que depois foi relançado, mas aí o povo estava menos bobo e não funcionou.
Há quem ache que o povo é idiota. Não é. O povão só tem menos recursos para se informar. Mas isso está mudando.

Racismo envergonhado

Já ouvi gente de quem eu gosto muito dizer que no Brasil não existe racismo. Existe.
Não estou falando aqui do racismo de campos de futebol, de discussão de rua, de demonstrações de ódio. Não é racismo de Supremacia Branca, de Black Power (sim, sei que não há racismo reverso ou há, sei lá). Estou tentando falar do racismo velado, racismo do olhar, racismo que está lá no lado sombrio de nosso coraçãozinho. Este tipo de racismo é difícil de ser observado, pq é escamoteado. Não temos coragem de admiti-lo.
No BBB 20 esse tipo de racismo pode ser visto. Babu Santana é ator, negro, gordo, feio... E é também o personagem mais interessante do jogo.
Em uma oportunidade, ele afirmou: "O olhar dessa mulher para mim é o de patroa. Eu odeio esse olhar." Ele falava de uma participante do jogo.
Outra, toda hora repete: "Tenho medo do Babu". Não é pelo mau humor (presidente Jajá, é assim que se escreve mau humor) nem pela rispidez dele. Participantes do BBB não primam pela boa educação, nós sabemos. Até a Leblonzinho deixou o ar blasé de lado (mas ela é alva, elegante, estilosa, aí pode).
O garoto lourinho foi mais incisivo (Aqui cabe breve explicação sobre o mecanismo do jogo. Os participantes são divididos em cozinha vip e xepa. Babu, por causa do jogo, sempre esteve na xepa.). Sua parceira no jogo disse que se pudesse levaria o Babu para a vip. O garoto mandou: "Acho que o lugar dele é lá na xepa" (não disse exatamente isso, mas foi o que quis dizer).
O racismo que aparece nesses momentos vem sempre misturado com condescendência. E na TV vemos isso com clareza. Aqui fora não temos como observar esses aspectos da vida. Pela TV podemos ver tudo com atenção e sem risco.
Aqui do meu lado está sentada minha querida sogra. Na TV, o rosto de Babu é enquadrado. Ela olha e diz, candidamente: "Que homem esquisito!"
Até a santa derrapa.