sábado, dezembro 24, 2016

BELA MORENA

No Metrô, bela morena conversava com a coleguinha. Eu, velhote gordo, 140kg, 1m80, a um palmo de distância, aparentemente invisível, ouvia.
- Fiquei muito constrangida. Saí do banho, nua, peguei a calcinha e o sutiã que tinha deixado na sala e, quando olhei pela janela, o velho estava lá, me devorando da janela do apartamento dele. A mulher apareceu por trás do cara,  me sacou e o puxou pra dentro.
A baixinha:
- Neide, a janela do seu apê dá direto na do cara. Você estava era querendo mostrar seus peitos.
- Esse casal é novo lá. Pensei que os dois fossem cegos. A mulher usa um tampão no olho. Lembra que o pessoal da igreja foi naquele prédio orar por uns cegos? Pensei que fossem eles. Estou passada.
- A mulher pirata já te enquadrou?
- Não encontro com ela, graças a Deus. A janela deles desde esse dia ficou fechada. Acho que ela proibiu o velho de olhar a paisagem.
- Numa dessas, você morre.
- O pior, minha irmã contou essa história pro Valdir. Ele ficou puto. Comigo e com o velho.
- Sua irmã é traíra. O Valdir é meio doido.
- Às vezes, penso em terminar. Noutro dia ele me seguiu aqui no Metrô. Não vi, claro. Recebi uma mensagem e... Peraí, vou te mostrar.
Mostrou pra amiga e pra mim, o gordo invisível.
- Ivete, dá uma olhada aqui. “Quem era o bonitão para quem você estava olhando? Estou te vendo.”
- Tenso.
- Olhei pra todo lado e não vi o Valdir. Mandei uma mensagem pra ele. “Deixa de ser bobo. Não tem ninguém bonito neste vagão.” Ele respondeu na bucha: “Então, você procurou”. Quando nos encontramos, mais tarde, cheguei a terminar, mas ele chorou...
- Amiga, esses é que são perigosos.
Chegamos à estação Nova América. Mais duas estações e teria de tirar o manto da invisibilidade e descer. Nada disso, só sairia do Metrô depois de ouvir o fim da história.
- Você sabe que ele não suporta que eu ande de óculos escuros. “Não sei pra onde você está olhando.” Ele põe o rosto pertinho do meu e fica olhando meus olhos através da lente para ver se estou olhando só para ele.
- Neide...
- Ele é trabalhador, bonitão, carinhoso... Só é ciumento.
- E aquele amigo seu que ele encheu de porrada.
- Não foi assim. Fui um pouco responsável. Conheço o Bobó desde criança. A gente estava voltando da praia. Um grupo do conjunto. O Bobó puxou minha saída de praia e eu fiquei só de biquíni. O Valdir estava me esperando, ele não sabia que eu iria à praia e eu que ele estaria me aguardando. Partiu pra cima do Bobó... Só que o Bobó é o macho superalfa do conjunto. Todos o respeitam. Acho que o Valdir pensou que as 10 aulas de caratê que fez iriam ajudá-lo. Tive de levá-lo para o hospital todo esbordoado. Só não morreu porque eu me embolei com o Bobó.

O Metrô, implacável, “Senhores passageiros, Estação Engenho da Rainha, desembarque pela esquerda”. Resolvi descer. Sou um gordo bem apanhado e, quem sabe?, o Valdir  não estava por ali, observando. Comigo as dez aulas seriam mais do que suficientes.
Antes de descer, no entanto, olhei bem para o belo rosto à minha frente, de uma jovem escultural de vinte e poucos anos. Tenho certeza, desgraçadamente, que verei este rosto, mais à frente, estampando manchetes das páginas policiais. 

quinta-feira, dezembro 01, 2016

QUE VENHAM OS ESCANDINAVOS


A última vez que andei de táxi, disse para o motorista:
- Não se preocupe com o UBER, não vai dar certo no Rio de Janeiro. Daria se trouxessem motoristas da Escandinávia para trabalhar aqui. Com nossa matéria-prima...” Ele percebeu meu sarcasmo (o que me emocionou).
Usei o UBER quatro vezes. A primeira viagem foi ótima. Motorista atencioso, preço baixo, carro confortável. Ganhei balinha, água gelada, ar condicionado Sibéria e rádio desligado. O paraíso. No final, ele me passou um cartão e orientou:
- Na próxima vez, o senhor não precisa usar o aplicativo. Ligue para mim, diretamente.
Na segunda vez, estava em frente ao Hortifruti da Tijuca, na “obscura” Rua Conde de Bonfim. Liguei e o piloto me pediu para esperar 5 minutos. 15 minutos depois, liguei pra ele.
- Sr. Utahy, estou em frente ao Hortifruti.
- Amigo, eu estou em frente ao Hortifruti.
- Meu carro é um Renault Sandero, prata... Espera, Sr. Utahy, estou no Hortifruti errado.
- Estou vendo em meu espertofone.
- Em 5 minutos chego aí.
Chegou em 20, depois de se perder outras vezes. Eu que não distingo marcas de carro, cheguei a bater na janela de um Renault qualquer coisa, quase levando ao enfarte uma senhora que parecia gêmea da ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina. De novo, motorista atencioso, preço baixo, carro confortável, água gelada, balinha, ar refrigerado Groenlândia e rádio sem funque. E o cartão seguido da recomendação:
- Ligue diretamente para mim.
O terceiro, eu estava no Recreio. Deu problema no GPS dele. Na hora de pagar, dei os 70 reais que ele me pediu, paguei o pedágio por fora e fiquei com a mão estendida para receber o cartão e a recomendação para ligar pra ele.
A quarta e última viagem foi mais traumática. Estava duro, dindim contado. Optei pelo UBER por causa da prévia do valor da corrida que o aplicativo faz. Daria 18 reais. Estava com 30. Ia dar até pra comer um pastel com o troco.
O carro que viria me buscar, um Logan, eu dispensaria na rua. Não deu tempo de recusar. Chegava em um minuto.
- Dias da Cruz. Bem no começo. O senhor pode ir pela...
- Não se preocupe, senhor. O GPS nos conduz.
Lembrei-me uma reportagem que li sobre as rigorosas avaliações que os motoristas de UBER fazem sobre nós, clientes. Um dos motivos de termos nossas notas reduzidas é exatamente o mau hábito de querer ensinar o melhor caminho. Uberistas são orgulhosos e zelosos de sua modernidade tecnológica. E lá fomos nós pela Linha Amarela, em direção ao final da Dias da Cruz. Senti falta da balinha, da água gelada, do ar condicionado Alaska e, no rádio, sertanejo universitário.
- Senhor, estou vendo aqui no Waze que teremos uma pequena retenção na Dias da Cruz.
- Meu querido, não preciso de Waze para informar engarrafamento na Dias da Cruz. Ela está sempre assim. Aliás, a Av. Meriti, a São Clemente e a Voluntários, também. Se eu tivesse um GPS desse jogava no lixo.
Chegamos, senhor:
- Quanto é?
- 43 reais, senhor.
- O quê?
- Tem uma pendência de uma corrida anterior.
- Pendência? Só pago essa corrida.
- Senhor, aqui está informando que o senhor tem uma pendência com o UBER.
- Não tenho. Não pago pendência. Pago esta corrida.
Paguei, desci e comecei a receber recados do UBER me cobrando 24 pratas da corrida do Recreio. O uberista me avaliou com nota três. Magoei.
Concluí, então, meu relato ao taxista:
- Aqui, tudo se desmoraliza, piloto.
Ele se virou para mim e disse:
- Sou auxiliar aqui no táxi. O dono me esfola. Fico até o fim do ano. Não tá dando, chapa. Vou pro UBER, mas também não vou trabalhar direitinho. Vou ter meus clientes por fora. Não estou aqui pra ser explorado por aplicativo.

Como disse, a salvação seriam os escandinavos. Como eles não virão, o UBER só não acabará porque será mantido vivo por nossos políticos demagogos e pelas milícias amarelas.

segunda-feira, outubro 10, 2016

OS CORREIAS



O senador foi ao Rio de Janeiro, sua base eleitoral.
Da casa de um correligionário, ligou para os cinco filhos.
- Será na casa do Feitosa.
Uma hora depois estavam todos juntos na casa do deputado amigo.
- Meus filhos, chamei-os aqui para tratar de um assunto delicado. Vou deixar a mãe de vocês.
- Pai...
- CALUDA! Ensinei-os a guardarem silêncio, enquanto falo. Meu motivo é justíssimo. A mãe de vocês não pode mais procriar e isso atrapalha nosso projeto político.
- Papai, peço permissão para falar.
- Fale, Emídio. Seja sucinto.
- Papai, eu sou deputado federal. Elídio e Egídio, deputados estaduais. Ezídio e Evídio, vereadores. Não está bom?
- Emídio, às vezes, você me enoja. Nunca consegui superar a decepção de você ter me dado uma neta. Onde está sua ambição? Daqui a 20 anos os filhos de vocês estarão assumindo mandatos legislativos. Você, se mudar de atitude, já terá exercido um ou dois mandatos executivos. Seus irmãos serão membros ativos do Congresso Nacional e meus netos serão vereadores. Dois em São Paulo; dois, aqui. A menina, veremos no que vai dar.
- Papai, peço permissão para falar.
- Fale, Evídio. Antes, quero parabenizá-lo pela estupenda votação. O vereador mais votado da cidade.
- Obrigado, papai. A situação de mamãe...
- CALUDA! Sua mãe seguirá para Campos dos Goitacazes. Comprei pra ela uma boa casa com três dormitórios e dependências para a serviçal. Vai para junto da família. Quando comuniquei minhas disposições, percebi nos olhos da mãe de vocês uma alegria que há muito não via.
- Papai, peço permissão para falar
- Diga, deputado Egídio.
- Sua nova esposa...
- Caso-me em seis meses. A moça já está escolhida. Boa saúde. Boa genética. A mãe dela teve cinco filhos. Beleza mediana, burralda, mas, espero, boa parideira.
- Pai...
- Deixe-me concluir. Nos próximos sete anos, produzirei mais cinco filhos. Daqui a 15 estarei na Presidência da República. Cada um de vocês me dará três netos. Minha descendência será constituída de senadores, deputados, vereadores, governadores, prefeitos... Seremos 25 nos meandros do Poder. Talvez até a neta chegue a algum lugar, quem sabe? O Partido Correísta Nacional (PCN) será respeitado.
- Papai, peço permissão para falar.
- Sim, Ezídio.
- Se o senhor pudesse ter mais de uma mulher, mais candidatos seriam produzidos.

- Você acha que eu não pensei nisso? Mas a bandeira de nosso Partido é a integridade da família. Os eleitores levam a família a sério e para chegarmos ao poder precisamos deles. Por que vocês acham que estou bolando uma narrativa em que sua mãe me abandonou e fugiu com o amante? O candidato tem de ser bom. Mais que bom: ótimo.

terça-feira, agosto 09, 2016

PENSAMENTO


O deputado interfonou para a secretária.
– Meus pensamentos já chegaram?
Solícita, como só secretárias bem pagas são, a moça respondeu:
– Estão todos aqui. Já vão entrar.
Sala grande, confortável. Mesa ampla, comidinhas e bebidinhas à vontade.
O deputado, na cabeceira da mesa, ordena os pensamentos.
– Temos muitos temas a tratar. Comecemos pelo mais momentoso. O que penso sobre a vitória olímpica desta moça no judô?
Semíramis Lopes, um pensamento, expôs:
– O senhor ficou emocionado com a vitória. Sempre se comove com exemplos de superação. A moça venceu a segregação racial, social e de gênero.
O deputado interrompeu.
– Semíramis, minha base não gosta desse negócio de gênero.
A moça, constrangida.
– Perdão, deputado. O senhor me pediu pra ser o pensamento daquele vereador de esquerda, seu amigo, lembra? Confundi-me.
O deputado sorriu.
– O garoto é uma parada pro futuro. Agora, por favor, o que eu penso sobre o assunto?
– O senhor ficou emocionado com a vitória. Sempre se comove com exemplos de superação. Superação com lastro na família. Família temente a Deus. Levada pela mãe aos cinco anos de idade para o judô, a moça superou uma vida sórdida na comunidade e se dedicou ao esporte. Não precisou de favorecimentos. É, hoje, uma briosa integrante da Marinha Brasileira.
O deputado dirigiu-se a outro pensamento.
– Algum reparo?
Etevaldo falou:
– Eu repensaria o " superou uma vida sórdida na comunidade". As redes sociais, o senhor sabe... Pode cair mal. Talvez um "superou grandes dificuldades". As comunidades estão integradas digitalmente e são contingente de votos considerável.
O deputado ficou satisfeito.
– Bem pensado, pensamento. Um de vocês, pense para mim uma forma de realçar a ligação da moça com as forças armadas.
Semíramis se apresentou. O deputado reagiu.
– Querida, melhor, não. Este assunto, pense só pro garoto. Ele não pode pensar em elogiar forças armadas. O público de lá tem horror a farda. Mais alguma coisa, pessoal?
Isabel Gonçalves lembrou as seleções de futebol.
O deputado cortou.
– De futebol só falamos depois de tudo consumado, exatamente como os comentaristas esportivos. De repente, o Neymar acorda e a Marta amarela. Sobre este assunto posso pensar sozinho. Serão os clichês de sempre. Acabou?
Etevaldo lembrou o impeachment.
O deputado advertiu:
– Não penso sobre isso. Gostaria de pensar que Dilma foi pro buraco merecidamente, mas vai que ela fica. Seguro morreu de velho.


segunda-feira, junho 06, 2016

O BOM CRIOULO


Uma tarde, no politizado Conjunto Proletário 1º de Maio, apareceu, coleira no pescoço, um cachorro preto. Não tinha mais de um ano. Bonitão, simpático, risonho, sempre bem-humorado, logo conquistou os corações de todos nós. Uma dentre as 70 portarias do grande conglomerado de apartamentos deu casa, comida e roupa lavada para o personagem que fazia morada nos corações dos empedernidos oprimidos do 1º de Maio.
De manhã, passo para a padaria e dou-lhe um pedaço de bifinho para cachorro. É o sinal para ele sair em peregrinação por todos os subconjuntos que formam o 1º de Maio. É o mundo dele. As crianças brincam com ele, as mães lhe coçam a cabeça e os homens riem com suas pandeguices.
Não se sabe por que, alguém resolveu nomear o cão. Um figura das antigas, com certeza. O cão virou Pelé.
Jurema, esperneou. Ela esperneava gritando. Quando esbravejava, então, sai de baixo.
– Esse cão não pode ser chamado de Pelé. É racismo!
Celsinho era contemporizador.
– Nada a ver. É porque ele é todo preto.
Jurema quase partiu pra cima, mas a discussão ganhou tal força que algo inédito na história do 1º de Maio aconteceu: os quatro subconjuntos que sempre resolveram suas pendências, individualmente, entenderam que aquela questão merecia uma reunião geral. Os quatro síndicos se juntaram e marcaram o encontro dos moradores interessados em discutir a questão. Só um tema seria tratado: o nome de nosso xodó.
Mais de 200 pessoas compareceram e logo começaram a pipocar as sugestões. Sugeri Xodó. Acharam pouco másculo. Celsinho mandou Feijão. Jurema, desta vez, foi pra cima. "Você é um racista. Um afrodescendente racista." Celsinho se defendeu: "Tem feijão de um monte de cor: branco, preto, mulatinho, vermelho... Você é doente."
O moderador pediu a palavra. "Vamos evitar nomes que possam ser associados a raça, política, futebol... Este cão não merece ser responsável por dissensões entre nós. Ele é um animal pacífico, sempre sorridente."
Jurema, linguaruda, não se conteve. "É o bom crioulo. Submisso, serviçal, sempre querendo agradar. Não levanta a voz, jamais. Nunca o vi protestar contra o assédio da criançada. Ele não me representa." Vaias, aplausos, gritos.
O moderador, paciente, pediu silêncio e que mais nomes fossem sugeridos. Aos borbotões, eles surgiram: Rex, Filó, Napalm, Alfredo ("Alfredo é o cacete, gritou o Alfredo")... "Tony", disse fraquinho dona Marieta. A turma fez silêncio e saiu o nome: Tony, de Tony Ramos.
O moderador proclamou: "O nome de nosso querido é Tony. Assim vamos chamá-lo".
De manhã, Tony saía para o seu bordejo diário. E entre carícias, coçadinhas e beijocas ouvia em alta voz seu nome repetido: Tony, Tony, Tony. Mas quando quem fazia carinho ou com ele brincava se abaixava e chegava perto de suas orelhas, sussurrava: "E aí, Pelé, como vai a vida".

Tony era o nome fantasia, o do coração era Pelé.

sexta-feira, junho 03, 2016

EU EMPREENDO


Um velho hábito perigoso: caminhar lendo jornal. Tudo bem, talvez não tão perigoso. Todos, hoje em dia, andam olhando pros celulares. Uma voz, débil, me chama:
– Gordo, Gordo...
Empédocles, o Pé, amigo velho de mais de 60 anos. Andava doente. Estava sentado em uma cadeira de plástico, por trás de um tabuleiro lotado de dvds piratas.
– Soube que você esteve mal. Folgo em vê-lo bem.
– É, Gordo, resolvi empreender. Fiquei quase um ano na casa de minha filha, me recuperando de um piripaque. O médico disse que tinha muito a ver com o tempo que eu passava sem fazer porra nenhuma. Ele me aconselhou a procurar o que fazer.
– Aí você virou bucaneiro?
– Dei um trocado pra neta e ela me ensinou a mexer no computador. Tenho um montão de dvds, você sabe. Gravo, escaneio as capas e vendo por uma merreca.
– É uma terapia, então? Não dá dinheiro.
– Não dava, Gordo. Minha neta é muito boa menina, mas também é uma menina má. Faz muita lambança. Muitos dvds que vendo aqui não são exatamente do meu acervo. De onde ela tira, não sei. Me garante que baixa na Internet. Finjo que acredito. Acabei ganhando uma sócia.
– Mas, Pé, ninguém te incomodou, ainda? Produto pirata costuma dar cana.
– Gordo, você sempre foi o mais babaca da turma. Era religioso, acreditava nas pessoas, tinha um hamster...
– Ainda tenho. Vários.
– Há seis meses minha banca funcionava dentro do conjunto habitacional. Um fiscal me levou uma grana e me disse preu vir aqui pra fora, na avenida. "Mais movimento, mais dinheiro", me aconselhou. Todo mês ele recolhe a mesada dele.
– Você ajuda a família, tem sociedade com a neta e paga propina. O negócio, certamente, vai bem.
– Não tenho do que reclamar. O empreendedor precisa diversificar.
Enquanto falava, percebi a aproximação de dois PMs. Pé olhou pra mim e fez um sinal. Queria que eu vazasse. Afastei-me, entrei na banca de jornal e de lá observei o que aconteceria. Se o amigo fosse preso, avisaria a família e, claro, me poria à disposição para ajudar. Sou um homem bom.
Os PMs conversaram com ele por um tempo. Quando foram embora, levaram com eles um dvd. Esperei que tomassem distância e me aproximei rindo.
– Os caras são seus clientes?
– Não, esses vêm por causa do jogo de bicho. Eu escrevo. Para não me encherem o saco, o chefe deixa um qualquer pra eles toda semana. Cafezinho e Cervejinha não falham.
– É, seus negócios são mesmo diversificados.
– Gordo, aqui eu trafico. Maconha, cocaína, sintéticas... Crack, não. É droga de zumbi. Aqui eu agencio 10 meninas. Quer dar uma olhada no book? Está aqui no lepitopi. Só não escolha minha neta, pra não haver constrangimento. Aqui eu promovo excursões a vários pontos turísticos do Brasil. Gordo, eu empreendo.
– Pé, você pode se estrepar. O Brasil está mudando.
– Gordo, te adoro, cara. Quando você diz essas coisas me dá uma grande alegria de eu não ser você. Deve ser uma merda chegar aos 75 anos acreditando nas bobagens em que críamos aos 20. Gordo, empreenda. Eu empreendo.



domingo, maio 15, 2016

O RATO


Igor, o rato, corria. Acabara de ser escorraçado do pé-sujo. Hora do almoço. A presença do rato no estabelecimento despertou furor. Três ou quatro clientes irados o caçavam implacavelmente. Passou ao meu lado e esgueirou-se por baixo de um carro estacionado.
Igor sabia que se ficasse embaixo do carro morreria. Juntar-se-ia aos muitos irmãos assassinados sem a menor piedade por homens e mulheres que odiavam atavicamente os belos roedores.
Veloz, Igor manobrou ousadamente depois de passar por baixo do terceiro carro estacionado. Mudou a direção da corrida, enfiou-se por um buraco e saiu do outro lado do muro do conjunto habitacional. Era uma solução perigosa, afinal não sabia o que encontraria ao sair do buraco. Um humano, um gato, um cachorro? Deu sorte. Caminho limpo. Correu, desviou-se de umas pedras lançadas da rua contra ele (o almoço deveria estar ótimo, os caras estavam putos demais) e entocou-se.
Mais tarde, eu lia um gibi embaixo da mangueira e Igor apareceu.
– Foi por pouco, caríssimo Igor.
– A fome, sacumé.
– Trouxe esse sanduba pra você. Coma na encolha.
– Valeu, Gordo. A vida é correria. Não sei porque tanto ódio.
– Ratos transmitem doenças. Você é um rato.
– Mas a gente se dá bem, né não?
– Sou velho. Antes dos 80, nunca conversei com ratos. Agora, não converso com humanos. O que será de mim se vencer os próximos dois anos e passar dos 90?
– Por que não fala com humanos?
– Não sei. Talvez não tenha nada a dizer. Talvez prefira ouvir vocês. Por falar nisso: onde anda o Arnoldo?
– Morreu. Comeu veneno. Não adiantou darmos os toques. O Arnoldo estava mais pra jumento do que pra rato.
– Igor, só vim aqui trazer seu pão. Se manda. A barra está limpa.
No caminho de volta, alimentei uma meia-dúzia de pombos. Não, eles não falavam. Ou não tinham interesse em falar comigo. A maioria das pessoas que conhecia, também não. Dos parentes me afastei há décadas. Fui filho único. A mulher me deixara e vivia feliz na outra América. Os poucos primos e primas viviam suas vidas. Sentia-me inconveniente visitando-os. Aliás, creio que esse sempre foi o grande problema de minha vida. Sempre me senti deslocado, um estranho em qualquer lugar. A vida inteira temi incomodar, me tornar um estorvo.
Os amigos morreram na minha frente, fiquei só. Gostaria de ter com quem conversar. Eu, Celestino e Bartô papeávamos por horas seguidas. A seleção de 1958 era melhor do que a de 1970? Bartô tirava onda. Viveu na Europa, nas décadas de 50 e 60. Nunca ficou bem explicado o motivo da volta ao Brasil. Vira os jogos. Alguns, pelo menos.
Celestino, o Neguinho, era especialista em mulheres. Gostosas eram Neide Aparecida, Renata Fronzi, Virgínia Lane, Wilza Carla, Adele Fátima... Como comparar Leônidas da Silva, Pelé e Garrincha a Ronaldo, Romário e Neymar? O que era Gisele Bundchen diante de uma Sophia Loren? Mulheres eram carnudas, tinham coxas, bunda e peitos de verdade. Porra, tinha dia que me batia uma puta saudade desses caras.
Amanheceu chovendo. Eu gostava demais de chuva. Frio. Não usava guarda-chuva. Vestia minha capa amarela, cobria a cabeça com um chapéu de plástico e lá ia eu tomar meu café na padaria. No caminho, vi Igor. Só podia ser ele Que rato fica de bobeira na rua às 8h da manhã. Era um suicida. Na volta traria um pão para ele.
Sentei-me no murinho, Igor se aproximou e se escondeu em um buraco perto de mim. A poucos metros a garotada jogava bola na quadra construída pela prefeitura e já parcialmente destruída pela comunidade. Humanos são foda.
– Aí, Gordo, tenho certeza que você trouxe alguma coisa pra mim.
– Um pão com goiabada satisfaz seu apetite?
– Não sou diabético.
– Igor, por que você fica dando bobeira a essa hora do dia na rua?
– Não gosto da noite.
– Qualé?
– Gordo, tenho cinco anos. Ratos que chegam à velhice duram dois. Nesses cinco anos já contribuí com o nascimento de milhares de ratinhos. Hoje, não tenho mais apetite sexual. Não tenho mais apetite algum. O que me faz sentir vivo é a adrenalina. Não sou mais útil. Ratos jovens não ouvem ratos velhos. Quantas vezes falei com o Arnoldo sobre veneno? Não me ouviu. Morreu com menos de 1 ano. Quem me dá atenção são os humanos. "Alá, um rato!!!" E corre gente pra lá pra cá. Sobem nos muros, nas mesas. Depois reagem, jogam pedras, correm atrás. Uma loucura. E eu, velho, lento e pesado escapo.
– Um dia...
– Foda-se, Gordo. Já vivi.
– Vou nessa.
– Ótima goiabada.
Concluí o papo porque percebi a aproximação de d. Gertrudes. Velha simpática, queria juntar os trapinhos comigo. Cumprimentei-a rapidamente e fui pra casa. Ler jornal, ver TV, dormir.
À tarde, vi o cadáver de Igor. Fui até ele, abaixei-me com dificuldade, certifiquei-me se era ele. Era. O focinho estava sujo de goiabada. A garotada do futebol o matara. Peguei-o pelo rabo e guardei-o na bolsa. Ia enterrá-lo em meu jardim.

Em casa, mais tarde, chorei por ele o que não chorara por meus amigos. Pensei em como seria minha vida a partir daquele momento, até que uma lagartixa em quem nunca havia reparado me consolou: "Gordo, a vida é feita de perdas. Pare de chorar e ligue a TV. Vai começar a novela".

terça-feira, março 22, 2016

CRAQUE DO FUTURO


Borges precisava tratar de um assunto sério e sigiloso com o amigão de todas as horas, Inácio. Ambos envolvidos no rendoso negócio do futebol, eram bons amigos, mas dinheiro, sacumé.
O diretor do clube o chamou:
– Borges, está tudo certo com o Conselho. Não pode vazar.
– E o Conselho? Você confia em todo mundo?
– Não falei com todo mundo. Só com aqueles que tenho no bolso.
Borges, autorizado, conversou com seu atleta.
– Fica mais um ano por aqui. Em dezembro a gente vê sua saída prum time de responsa. As conversas com o Paris Saint-Germain estão alinhavadas.
O garoto confiava nele.
– Só pode vazar depois de tudo acertado. Não quero ficar com o pau na mão.
A conversa de Lula com Dilma estava no noticiário. Grampo, escuta telefônica... Legal, ilegal... Borges assistia ao Fantástico e suas câmeras escondidas.
– Inácio, vamos almoçar? Lembrar os velhos tempos. Sabe que a Soninha está chegando de Portugal? Daqui a meia hora mando um táxi pra te pegar.
No táxi, Inácio se preocupou com a viagem longa.
– Onde vamos? Pegou a ponte.
– Maricá. Tem um restaurante fuderoso, lá.
Inácio apreciou a paisagem. Outono com solzão de verão. Em Maricá seguiram para uma praia erma. No carro, não trataram do assunto que conversariam. O carro parou na beira da praia. Em volta, ninguém.
– Borges, tô assustado.
– Vai ficar mais. Tire toda a sua roupa. Se quiser, fique de cueca. Vamos pro mar.
– Você resolve. Conversamos no mar ou retornamos.
– Vamos lá.
A água estava agradável. Borges chegou a dar uns mergulhos antes de ir direto ao ponto.
– Desculpe-me pelo local. Confio em você, mas está tudo confuso. Esse papo não pode vazar. Se vazar, eu nego. Aí não quero ouvir gravações feitas na encolha. É meu meio de vida. O importante: o Jeferson Eduardo de Aragão Barbosa aceitou a proposta do Flamengo. A diretoria vai dar uma esperneada, fingir que resiste para não contrariar muito à torcida, mas concordará.
– Um registro: babaquice esse negócio de nu na praia. Não sou político, porra. O menino é uma joia, você sabe.
– Sem nhenhenhem. A culpa vai cair nas costas do presidente anterior que estabeleceu multa rescisória baixa. O atual dirá que estava vendo isso quando foi traído pelo clube co-irmão. Vai ameaçar entrar na Justiça e aquela bobeirada toda.
– Não acreditei que o Vasco venderia. As exigências são aquelas?
– O Flamengo vendendo, o "Vasco" leva por fora, o garoto, eu e você.
– E o nome?
– Ele faz questão do nome inteiro. Até as rádios estão atendendo o pedido dele.
– "Jeferson Eduardo de Aragão Barbosa recebeu a bola, deslocou-se pela lateral, passou para Nenê que, de primeira, devolveu. Jeferson Eduardo de Aragão Barbosa recebeu na frente, driblou o zagueiro e... Gol, goool de Jeferson Eduardo de Aragão Barbosa." Os caras sacaneiam.
– Ele não vai se não usarem o nome todo. Na camisa, inclusive.
– Eduardo de Aragão, que tal?
– Tem muito jogador com dois nomes: Thiago Silva, Thiago Motta, Renato Augusto, Eduardo Augusto. Ele é diferenciado. Palavras dele.
– Borges, muita gente acha que empresário de jogador ganha muito. Mas é dinheiro merecido. Aturar esses malas...

– Inácio, há profissões piores... e malas maiores. 

segunda-feira, março 14, 2016

A QUALQUER PREÇO

A pobreza. A maioria é pobre do nascimento à morte. Uns se conformam, não têm forças para vencê-la. Outros a vencem por reunirem dois atributos: vontade e falta de caráter.
Douglas nasceu pobre. Filho de viúva, três irmãs mais velhas, distraía-se estudando. Sabia que não seria pobre a vida toda.
Bonitão, aprendeu a conhecer as mulheres observando as irmãs. A mãe, não. A mãe era da antiga. O pai morreu, morreram todos os homens. Já as irmãs, eram do balacobaco. Gostavam tanto de sacanagem que logo arrumaram filhos, perderam o viço e seguiram na merda.
Douglas casou-se com uma jovem classe média. O sogrão o ajudou. Colocou para trabalhar na empresa da família, uma construtora. Só exigiu que ele estudasse. Ele se jogou em uma faculdade particular, virou administrador e abriu o próprio negócio.
Um dia, tomando uma cerva com os amigos, teve uma iluminação. "Esta mulher com quem estou nada mais tem a me oferecer. Não temos filhos. Ambos somos jovens e belos. Podemos reconstruir nossas vidas. Preciso ter mais dinheiro do que tenho hoje".
Adalgisa nasceu rica. Filha de advogado abonado. Morou, no final da adolescência, em Portland, no Oregon, EUA. Ela adorava. Cidade de clima frio.
Aos 20 precisou voltar para o Brasil. O pai tinha planos para ela. Deixou um amor na outra América, mas, obediente, voltou.
Em um batizado, conheceu Douglas. Pena que era casado. Gostou dele. Foram apresentados, conversaram.
Douglas, dois meses depois, ligou pra ela. Encontraram-se. Ele lhe disse que o casamento dele acabou no momento que a conhecera. Já estava separado da mulher. Se ela desse uma chance a ele... Ela deu.
Quando Douglas chegou no batizado da filhinha da prima da mulher, estava irritado. Programa de família. Conversa vai, conversa vem e um linguarudo apontou Adalgisa. "Aquela moreninha linda lá no canto é filha do dr. Tubarão". Douglas olhou e quis confirmar: "Dr. Tubarão, o advogado? O dr. Anacleto Tubarão?" A língua garantiu. "Adalgisa Tubarão. Linda, riquíssima e quase santa. Religiosíssima." Douglas teve outra iluminação.
Douglas conquistava sogros com facilidade. "Quero netos", exigiu o dr. Tubarão. Douglas e Adalgisa deram dois para o velho. E Douglas pensou que a vida era boa com ele. Muito dinheiro, uma mulher belíssima e inocente, filhos... Sua empresa não ia lá das pernas, mas o sogro, mesmo descontada a pensão da ex-mulher, defecava dinheiro.
O velho, que nem era tão velho assim, 58 anos, teve um piripaque e morreu. A vida é cheia de surpresas, dizia o filósofo. Depois da porradaria entre os sócios, a viúva e filhos que apareceram, sobrou bastante dinheiro. Menos, no entanto, do que todos esperavam. Descobriu-se que o tubarão era mesmo matador. E matava sem camisinha.
Adalgisa ficou com o dúplex na Barra, dois carros, participação no escritório de advocacia, um sítio em Petrópolis e a casa em Portland. Com o desmonte de sua empresa, Douglas, ano após ano via seu patrimônio pessoal despencar. Teve ótima ideia para um negócio. Conversou com a mulher. "Venda o sítio, me empreste um dinheiro e logo multiplico esse capital". Adalgisa foi irredutível: "Não me desfaço de patrimônio. Papai deixou pra mim". A discussão esquentou, Douglas descontrolou-se, agrediu a mulher e ela deu parte dele na delegacia. Uns dias depois, Adalgisa pegou as crianças e partiu para Portland. "Vou dar um tempo", ela disse. E foi.
Douglas ainda estava pasmo com a reviravolta em sua vida. Tudo se encaminhava tão bem.
Um dia Adalgisa ligou e disse que estava voltando ao Brasil. Queria conversar. Madura, bonita, firme, anunciou: "Vou me divorciar. Assim que o divórcio sair me casarei com Terence, meu amor americano".
Douglas, estupefato: "Que amor americano?"
Adalgisa, serena: "Namorei Terence na adolescência. Meu pai atrapalhou. Retomamos de onde paramos."
"Mas, e as crianças? Temos dois filhos. Tenho direitos", indignou-se Douglas.
"Bom saber que você se preocupa com eles. Vou deixá-los para você. O apartamento, o sítio e os carros, também. Terence faz questão que comecemos do zero", explicou Adalgisa.
Douglas percebeu a iluminação. As crianças eram pré-adolescentes. Se viravam bem sozinhas. Venderia o dúplex, os carros, o sítio, tentaria arrancar mais algum dinheiro da mulher e se manteria mais longe de onde veio: a pobreza.
Aos quarenta e poucos, apesar dos filhos, conseguiria se erguer, nem que fosse se casando com uma mulher mais velha e com dinheiro. Até já tinha uma em vista. A imagem de pai abandonado com filhos o ajudaria.

Não voltaria a ser pobre. Não, por enquanto.