domingo, maio 15, 2016

O RATO


Igor, o rato, corria. Acabara de ser escorraçado do pé-sujo. Hora do almoço. A presença do rato no estabelecimento despertou furor. Três ou quatro clientes irados o caçavam implacavelmente. Passou ao meu lado e esgueirou-se por baixo de um carro estacionado.
Igor sabia que se ficasse embaixo do carro morreria. Juntar-se-ia aos muitos irmãos assassinados sem a menor piedade por homens e mulheres que odiavam atavicamente os belos roedores.
Veloz, Igor manobrou ousadamente depois de passar por baixo do terceiro carro estacionado. Mudou a direção da corrida, enfiou-se por um buraco e saiu do outro lado do muro do conjunto habitacional. Era uma solução perigosa, afinal não sabia o que encontraria ao sair do buraco. Um humano, um gato, um cachorro? Deu sorte. Caminho limpo. Correu, desviou-se de umas pedras lançadas da rua contra ele (o almoço deveria estar ótimo, os caras estavam putos demais) e entocou-se.
Mais tarde, eu lia um gibi embaixo da mangueira e Igor apareceu.
– Foi por pouco, caríssimo Igor.
– A fome, sacumé.
– Trouxe esse sanduba pra você. Coma na encolha.
– Valeu, Gordo. A vida é correria. Não sei porque tanto ódio.
– Ratos transmitem doenças. Você é um rato.
– Mas a gente se dá bem, né não?
– Sou velho. Antes dos 80, nunca conversei com ratos. Agora, não converso com humanos. O que será de mim se vencer os próximos dois anos e passar dos 90?
– Por que não fala com humanos?
– Não sei. Talvez não tenha nada a dizer. Talvez prefira ouvir vocês. Por falar nisso: onde anda o Arnoldo?
– Morreu. Comeu veneno. Não adiantou darmos os toques. O Arnoldo estava mais pra jumento do que pra rato.
– Igor, só vim aqui trazer seu pão. Se manda. A barra está limpa.
No caminho de volta, alimentei uma meia-dúzia de pombos. Não, eles não falavam. Ou não tinham interesse em falar comigo. A maioria das pessoas que conhecia, também não. Dos parentes me afastei há décadas. Fui filho único. A mulher me deixara e vivia feliz na outra América. Os poucos primos e primas viviam suas vidas. Sentia-me inconveniente visitando-os. Aliás, creio que esse sempre foi o grande problema de minha vida. Sempre me senti deslocado, um estranho em qualquer lugar. A vida inteira temi incomodar, me tornar um estorvo.
Os amigos morreram na minha frente, fiquei só. Gostaria de ter com quem conversar. Eu, Celestino e Bartô papeávamos por horas seguidas. A seleção de 1958 era melhor do que a de 1970? Bartô tirava onda. Viveu na Europa, nas décadas de 50 e 60. Nunca ficou bem explicado o motivo da volta ao Brasil. Vira os jogos. Alguns, pelo menos.
Celestino, o Neguinho, era especialista em mulheres. Gostosas eram Neide Aparecida, Renata Fronzi, Virgínia Lane, Wilza Carla, Adele Fátima... Como comparar Leônidas da Silva, Pelé e Garrincha a Ronaldo, Romário e Neymar? O que era Gisele Bundchen diante de uma Sophia Loren? Mulheres eram carnudas, tinham coxas, bunda e peitos de verdade. Porra, tinha dia que me batia uma puta saudade desses caras.
Amanheceu chovendo. Eu gostava demais de chuva. Frio. Não usava guarda-chuva. Vestia minha capa amarela, cobria a cabeça com um chapéu de plástico e lá ia eu tomar meu café na padaria. No caminho, vi Igor. Só podia ser ele Que rato fica de bobeira na rua às 8h da manhã. Era um suicida. Na volta traria um pão para ele.
Sentei-me no murinho, Igor se aproximou e se escondeu em um buraco perto de mim. A poucos metros a garotada jogava bola na quadra construída pela prefeitura e já parcialmente destruída pela comunidade. Humanos são foda.
– Aí, Gordo, tenho certeza que você trouxe alguma coisa pra mim.
– Um pão com goiabada satisfaz seu apetite?
– Não sou diabético.
– Igor, por que você fica dando bobeira a essa hora do dia na rua?
– Não gosto da noite.
– Qualé?
– Gordo, tenho cinco anos. Ratos que chegam à velhice duram dois. Nesses cinco anos já contribuí com o nascimento de milhares de ratinhos. Hoje, não tenho mais apetite sexual. Não tenho mais apetite algum. O que me faz sentir vivo é a adrenalina. Não sou mais útil. Ratos jovens não ouvem ratos velhos. Quantas vezes falei com o Arnoldo sobre veneno? Não me ouviu. Morreu com menos de 1 ano. Quem me dá atenção são os humanos. "Alá, um rato!!!" E corre gente pra lá pra cá. Sobem nos muros, nas mesas. Depois reagem, jogam pedras, correm atrás. Uma loucura. E eu, velho, lento e pesado escapo.
– Um dia...
– Foda-se, Gordo. Já vivi.
– Vou nessa.
– Ótima goiabada.
Concluí o papo porque percebi a aproximação de d. Gertrudes. Velha simpática, queria juntar os trapinhos comigo. Cumprimentei-a rapidamente e fui pra casa. Ler jornal, ver TV, dormir.
À tarde, vi o cadáver de Igor. Fui até ele, abaixei-me com dificuldade, certifiquei-me se era ele. Era. O focinho estava sujo de goiabada. A garotada do futebol o matara. Peguei-o pelo rabo e guardei-o na bolsa. Ia enterrá-lo em meu jardim.

Em casa, mais tarde, chorei por ele o que não chorara por meus amigos. Pensei em como seria minha vida a partir daquele momento, até que uma lagartixa em quem nunca havia reparado me consolou: "Gordo, a vida é feita de perdas. Pare de chorar e ligue a TV. Vai começar a novela".