segunda-feira, julho 25, 2011

LIVROS QUE LI E GOSTEI - Um caderno e tanto, de Agota Kristof

Há quase 30 anos revisei Um caderno e tanto, da húngara Agota Kristof. O livro me impressionou bastante, mas por aqui não teve a repercussão merecida. Há umas semanas reencontrei-o escondido entre outros bons livros. Tirei dele a poeira e reli-o. Extasiado, procurei no Google mais sobre as obras da autora e descobri que Um caderno... é apenas o primeiro volume de uma trilogia. Fui à Estante Virtual e encomendei os outros dois volumes.
A história dos dois gêmeos deixados pela mãe para serem cuidados pela avó desnaturada é impressionante. Os gêmeos cuidam de sobreviver com armas que criam. Narrativa seca, dura, minimalista.
Segue um capítulo de amostra. Gostaria de alertar que a única orientação acatada por mim de meu mentor, o reverendo Peff, foi a de jamais emprestar livros. Os conhecidos não gastem meu tempo com esse tipo de súplica.

EXERCÍCIO DE ENDURECIMENTO DO ESPÍRITO
A Avó nos diz:
- Filhos de uma cadela! As pessoas nos dizem:
- Filhos da Bruxa! Filhos da puta! Outros dizem:
- Imbecis! Vagabundos! Perebentos! Porcos! Jumentos!
Canalhas! Carniça! Cagões! Piratas! Raça de assassinos!
Quando escutamos essas palavras, nosso rosto fica vermelho, nossos ouvidos ficam zumbindo, nossos olhos piscam, nossos joelhos tremem.
Nós não queremos mais nem tremer nem ficar vermelhos, nós queremos nos habituar aos insultos, às palavras que ofendem.
Ficamos sentados à mesa da cozinha, um em frente ao outro e, nos olhando bem nos olhos, disparamos palavras cada vez mais atrozes.
Um diz:
- Bosta! Olho do cu! O outro:
- Puto! Fodido!
E assim continuamos até que as palavras não penetrem mais no nosso cérebro, nem sequer nos nossos ouvidos.
Fazemos este exercício mais ou menos uma meia hora por dia, depois vamos passear pelas ruas.
Nós sempre conseguimos que as pessoas nos insultem e, por fim, constatamos que isso nos deixa completamente indiferentes.
Mas há também as palavras antigas. Nossa Mãe nos dizia:
- Meus queridos! Meus amores! Meus anjinhos! Meus nenenzinhos adorados!
Quando nos lembramos destas palavras, nossos olhos se enchem de lágrimas.
Estas palavras precisamos esquecer, porque agora ninguém nos diz essas coisas e porque a lembrança que elas nos trazem é um peso muito grande para carregar.
Por isso, recomeçamos o nosso exercício de uma outra maneira.
Nós dizemos:
- Meus queridos! Meus amores! Eu amo vocês... Eu nunca os deixarei... Só amarei vocês... Sempre... Vocês são toda a minha vida...
As palavras, à força de serem repetidas, perdem pouco a pouco sua significação e a dor que elas carregam se atenua.

sexta-feira, julho 22, 2011

PEQUENA & GRANDE


No recanto da serra onde moro há duas padarias: uma grande, uma pequena. A grande vende pão a peso; a pequena, a quantidade. A unidade custa R$ 0,25, na pequena; na grande, R$ 0,34. Filas enormes se formam na porta da padaria pequena. As pessoas dizem que é porque o pão da pequena é mais gostoso. Mentira. Somos pobres, preço é importante, mas gostamos de justificar nossa escolha imaginando que o fazemos por causa da melhor qualidade do pão da pequena. O pão da grande também não é lá essas coisas, mas ela é tão maior do que a pequena que nem se abala com o brilhareco da menor.
Pão de qualidade não se encontra em nenhuma das duas padarias, mas, como já dito, não é isso que a choldra (obrigado, Elinho) busca. O pão é feito ao gosto da freguesia: cascudo, oco, farelento, grandão. Com pão os serranos são pouco exigentes, o mesmo não acontece quando se trata de música. A caminho da padaria, 6 da tarde, ouço escorrendo das janelas pérolas de nosso cancioneiro: “Canudo se deu bem. Mó moral, mó moral. Comprou um Ford. Ford. Ford. Ford”. Ford/fode, sacaram a rica relação? Na janela, envolvida pela música, ri a senhorinha. Afasto-me e meu ouvido funqueiro capta: “O Carvalho tá lá dentro. O Carvalho tá lá fora. Dentro. Fora. Dentro. Fora”. Percebe-se a genialidade do mesmo compositor.
A fila da padaria pequena está enorme, resolvo ir à grande. Um grupo dança em volta de uma mesa. Uma bunda ENORME desce até o chão. Não sei como a dona do rabão consegue levantá-lo, mas levanta-o com garbo. Lembrei-me do besouro. Li em algum lugar que com aquele corpão e aquelas asinhas o besouro não deveria voar. O inseto é um milagre. A bunduda também é um fenômeno. Ela só poderia ficar sentada.
Pães na mão, fui para casa. Sentei-me, liguei o som e antes de pôr os fones e ouvir uns roquezinhos, escutei, vindo do vizinho, um trecho do clássico retrofunque, na voz da veterana Tati Quebra-Barraco: “Entrei numa loja, estava em liquidação. / Queima de estoque, fogão na promoção. / Escolhi da marca Dako porque dako é bom!” Obra-prima.