segunda-feira, maio 30, 2011

DO OUTRO LADO, de Natsuo Kirino
Na livraria, impressionou-me a bela capa de Grotescas, de Natsuo Kirino, publicado pela Rocco. Livro na mão, li orelhas, trechos do romance, quarta capa. Como vivo no osso, as 60 pratas que custavam o livro me espantaram. Em casa, pela Internet, fui à Estante Virtual e comprei o livro anterior de Kirino, Do outro lado, por 20 merrecas.
Quatro mulheres trabalham no turno da noite de uma fábrica de refeições prontas. Formam uma equipe que opera em linha industrial. Trabalho repetitivo, duro, tedioso. Mais do que amigas (e nem são tão amigas) funcionam como um time bem preparado.
Yayoi, a mais delicada das quatro, cansada de ser agredida pelo marido, num rompante o mata. Diante do corpo, não sabe o que fazer. Liga, então, para Masako, a companheira de trabalho, que é bastante expedita.
À pergunta, o que fazer com o corpo?, Masako resolve que a melhor solução é retalhá-lo. Esse é o mote do romance de Kirino: quatro donas-de-casa, com diferentes motivações, são capazes de fazer o impensável. Não só elas. Nós, também.
O livro não é só isso. Os personagens são bem construídos, comportam-se coerentemente. Parece pouco, mas não é. A trama é bem desenvolvida, mesmo com alguns buracos. Um exemplo: em determinado momento, os policiais que investigavam o crime saem de cena.
Menos importantes são os erros de português. Ciclo vicioso tem uma meia-dúzia. Mataria-o, sairia-se... Entendo que matá-lo-ia é pouco usado nos dias atuais, mas o mataria não é tão estranho assim. As ênclises são esculachadas na tradução do romance de Kirino. Impliquei também com um nadica de nada na boca de um personagem, mas aí já é preciosismo. No final, Do outro lado é ótimo romance policial.
Quem sabe o mal que se esconde no coração dos homens?, propunha o velho gibi. Não só o Sombra sabe, nós, leitores do livro de Kirino, teremos pálida ideia do que vai pelo interior de alguns que, surpreendentemente, fazem o mal e outros de quem só o mal podemos esperar.

sexta-feira, maio 27, 2011

TEXTOS RECAPTURADOS

“Achei que meu pai fosse Deus” é um livro organizado pelo genial escritor norte-americano Paul Auster. Durante alguns meses ele esteve à frente de um programa de rádio. Lia, ali, histórias curtas enviadas pelos ouvintes. Algumas dessas histórias foram publicadas. Uma delas, reproduzo. Como dizem os novos letrados, impactou-me.

UMA LIÇÃO NÃO APRENDIDA
Eu perdia tudo. Quer dizer, eu perdia ou destruía. Jóias. Bonecas. Jogos. O que caísse em minhas mãos eu mastigava, estropiava ou enviava para uma morte prematura. Eu comia papel e certa vez consumi um livro inteiro. Coitado do George Curioso, não ficou curioso por muito tempo perto de mim. Foi comido. Papai e mamãe me chamavam de “desastre instantâneo” para os objetos inanimados. E porque eu era tão bagunceira, eles sempre me colocavam à mesa ao lado dos convidados que não planejavam convidar de novo.
Um dia, no segundo ano primário, quando eu saía da escola, minha mãe me olhou surpresa. “Carol”, perguntou calmamente, mas com expressão confusa no rosto, “onde está seu macacão?” Olhei-me e vi meus sapatos de verniz de fivela, o collant branco que estava rasgado nos joelhos e o suéter branco (mas sujo) de gola rulê. Até que minha mãe falasse, eu não havia notado que não estava completamente vestida. Fiquei tão surpresa quanto ela, pois lembrava bem que vestira o macacão naquela manhã. Minha mãe e eu fomos até a escola, olhamos nas calçadas, nos corredores e no playground, mas não achamos o macacão de lã.
No inverno seguinte, meus pais me compraram um casaco de pele sintética com um chapéu combinando. Adorei meu casaco e meu chapéu novos e me sentia como uma moça ao usar o casaco, porque ele não vinha acompanhado por luvas com separação somente para o polegar. Eles queriam me comprar um casaco com capuz, porque sabiam como eu era, mas implorei e prometi que seria cuidadosa e não perderia o chapéu. Adorei especialmente os grandes pompons de pele na ponta do atilho do chapéu.
Um dia, meu pai chegou do trabalho e me chamou na sala. Inclinou-se e me abraçou, e depois me pediu que vestisse o casaco e o chapéu novos para que ele visse. Corri escada acima, saltando de dois em dois degraus, louca para me exibir para o meu pai. Vesti o casaco, mas não consegui achar o chapéu. Olhei nervosamente embaixo da cama e no closet, mas não estava em lugar algum. Talvez ele não notasse que eu estava sem chapéu.
Voei escada abaixo e desfilei como se estivesse numa passarela, com poses e sorrisos, exibindo meu casaco novo para meu pai, que me dedicava toda a sua atenção e me dizia como eu estava linda. Então, ele disse que queria ver o chapéu também. “Não, papai, quero mostrar só o casaco. Olhe só como o casaco fica em mim!”, disse eu, requebrando pelo corredor e tentando evitar o assunto do chapéu desaparecido. Eu sabia que aquilo daria encrenca. Ele estava dando umas risadinhas e eu me achei adorável e amada porque ele estava rindo e brincando comigo. A história do chapéu se repetiu umas duas vezes e de repente, no meio do riso, papai me bateu. Ele me deu um tapa na cara e eu não entendi o porquê. Ao ouvir o barulho do tapa, minha mãe gritou: “Mike! O que você está fazendo?! O que você está fazendo?!”. Ela estava esbaforida e atônita. A fúria de meu pai machucara tanto minha mãe como eu. E fiquei ali, com a mão no meu rosto que ardia, chorando. Então, ele tirou meu chapéu novo do bolso do seu casaco. Achara-o na rua e, enquanto me olhava por cima dos óculos, disse: “Quem sabe agora você aprende a ser mais cuidadosa e a não perder as coisas”.
Sou uma adulta agora, e ainda perco coisas. Ainda sou descuidada. Mas o que meu pai me ensinou naquele dia não foi responsabilidade. O que eu aprendi foi a não confiar em seu riso. Porque até a risada dele dói.

Carol Shennan-Tones
Covington, Kentucky

quarta-feira, maio 25, 2011

LETRA & MÚSICA

Não sou leitor voraz. Desses que se sentem obrigados a ler meia-dúzia de livros por semana. Leituras igualmente importantes para mim são jornais, revistas, redes sociais, sítios de fofoca, resumos de novela. Sou eclético.
Sempre estou lendo um livro, mas sem pressa.
Entre ler e ouvir música, prefiro a música. Há quem faça as duas coisas, simultaneamente. Se o livro ou o disco não vale nada, consigo.
Meus pais eram grandes leitores. Não se preocupavam em ler alta literatura. Nem eu.
Dois grandes presentes que ganhei de meu pai, por volta dos 10 anos de idade, foram as coleções de Alexandre Dumas e Monteiro Lobato. Por causa de Dumas, tinha uma raiva mortal do povo francês.
Li livros considerados péssimos pela crítica que considerei bastante satisfatórios. Também deixei pelo meio volumes incensados pelos especialistas. Sem dor na consciência, abandono livros sem terminar de ler. Não sou masoquista.
Não me sinto obrigado a ler livros que compro imediatamente após adquiri-los. Já comprei livros que li anos depois de pegarem muita poeira nas estantes de minha casa. Não acredito que até o final de minha existência lerei tudo o que tenho.
Não me imagino sem música e literatura. Nada é mais importante para mim. Encaro quase todos os gêneros: humor, ficção científica, terror, policial, romântico etc. Leio poucos ensaios. Jamais perco meu tempo com autoajuda e religiosos.
Tenho autores prediletos, de acordo com a fase da vida e meu humor. Se tivesse de citar um só autor, escolheria Miguel Torga. O Torga prosador. Poesia não é a minha praia.
A revista Veja informou em reportagem que nunca se leu tanto quanto hoje.
Deixei de acreditar em imprensa e Papai Noel há muito tempo.

sexta-feira, maio 20, 2011

A gatinha



Um filho é uma alegria, às vezes.
Suely tem um. Um só. Gravidez de risco. Os médicos garantiram que morreria, se não abortasse. Não morreu.
O marido um dia foi embora. Deixou-lhe o apartamento. Ela se sentiu falta da companhia, mas só isso.
O filho cresceu. Poucas vezes parava em casa. Trabalho, estudo, farras.
Voltando do mercado, Suely encontrou uma gatinha. Estava à morte. Recolheu-a, levou-a para casa, cuidou dela. A muito custo, muito remédio, muita dedicação viu a gatinha recuperar-se.
Era companhia melhor do que o ex-marido. Não sentia a ausência do filho. As brincadeiras da gatinha a divertiam.
O filho engravidou uma jovem. Casou-se. Pediu à mãe para morar com ela. Suely abriu as portas para a nora.
Deram-se bem, conversavam bastante. No colo de Suely, a gatinha. A nora era boa companhia. A gatinha era melhor. Humanos falam demais.
Nasceu a criança, os meses passaram. Um dia o neném adoeceu. O médico disse que ele era alérgico a pelo de gato.
O filho chegou em casa, depois da consulta, e deu um ultimato à mãe:
- Bruninho é alérgico a pelo de gato. A senhora escolhe: seu neto ou o gato. Se ficar com o gato, vamos sair daqui e iremos para a casa da mãe da Isadora.
Suely olhou para a gatinha, para o neto e, sem titubear: “A gatinha fica. Até morrer, eu ou ela, ficaremos juntas”.

quinta-feira, maio 05, 2011

SACI

- O que houve com o Saci?
- O Borges encheu ele de porrada.
- Não são amigos?
- Quantas vezes você escutou o Saci falando sobre a putaria da TV? As meninas dão à vontade porque a TV mostra como comportamento natural. Hoje, há mais homossexuais porque as novelas estão cheias de gays. Filhos não respeitam pais por causa da TV.
- E o Borges se importou com isso? O Saci fala essas merdas a vida toda.
- Com que ator da TV o Saci se parece?
- Lembra de longe o Lázaro Ramos. Ele ficava na bronca quando mencionávamos isso.
- Ele sempre se achou parecido com o Denzel Washington. Mas, agora, o Lázaro Ramos está fazendo papel de pegador em uma novela.
- Eu vi. É o novo José Mayer.
- O Saci acredita que a TV influencia todo mundo. Se faz mulheres darem à vontade, faz também mulheres darem pra ele, que, agora, está se achando igual ao Lázaro Ramos.
- Já estou entendendo o motivo das porradas que levou.
- Primeiro ele foi pra cima da Natália. Aquela mulatona da padaria. Se deu bem.
- Que isso?
- Depois parou a irmã do Pavio, disse que sempre a desejou e que era para ela acompanhá-lo até o apartamento dele. Ela foi.
- Ela não é noiva?
- O cara pirou. Começou a achar que era o Lázaro. Aí foi pra cima da mulher do Borges, a Neusa. Ele sempre teve um tesão louco nela. Desde a escola.
- Peraí, ele pegou e o Borges deu-lhe umas porradas?
- Nada, ele chegou na Neusa e disse que aquele era o dia de sorte dela, chamou-a pra fazer um amorzinho gostoso. Ela riu, depois foi se enfurecendo, pegou o celular e chamou o Borges.
- Por que o Saci não se mandou?
- Ele disse que ela estava fazendo charme, não estava ligando pra ninguém e que ele daria a chance de ela ter uma tarde de amor. O Borges chegou e arrebentou com ele. Só não matou porque separaram.
- Ele está todo estropiado. Estive com ele.
- Vai piorar. A irmã do Pavio não aceitou a bossa do cara da novela de dar uma bimbada e sair fora. Discretamente, por causa do noivo, falou com o Pavio.
- E o Pavio?
- O Pavio ficou um tempo com a Natália. Romance turbulento. Cheio de idas e vindas. A irmã contou que o Saci pegou o ex-amor dele.
- Como ela soube?
- O Saci não seguiu o roteiro. Lázaro Ramos, na novela, papa e manda a papada pra casa. O Saci gosta de conversar, contar vantagem, falou com a irmã do Pavio que havia traçado a Natália e também para ela não daria uma segunda oportunidade.
- O Saci?
- Está tranquilo. A Neusa foi só um acidente. Segundo ele, ela quer ser dele. Só tem medo do Borges. Um dia ele volta a ela. Por enquanto, há muitas mulheres para comer.
- Você não vai avisá-lo?
- Não. Ele morrerá feliz, sem perceber. Sentirá dor quando estiver sendo incinerado pelo Pavio. O cara é mau. Mas, mesmo destroçado, nunca vi o Saci tão confiante, feliz. Desencarnará artista.