quarta-feira, agosto 31, 2005

A barraqueira

Almerinda
É a quarta vez que trago meu carro aqui. A borracha não está emborrachada. Fala sério, vocês são uns incompetentes.

Atílio, o lanterneiro
D. Almerinda, há três semanas a senhora vem aqui todos os dias reclamar do conserto de seu carro. Ninguém mais sabe o que fazer.

Almerinda
A borracha não está emborrachada. A pintura do pára-lama está diferente do resto do carro. Olhando assim não dá pra ver, mas com uma lupa possante, percebe-se.

Atílio
O dr. Gonzaga, nosso diretor do setor de emborrachados, está descendo para examinar a borracha de seu carro. Chamei também o Carlinhos Olho-de-Lince para ver se é fato que o pára-lama está pintado em um tom de verde diferente.

Almerinda
Aproveite e chame alguém para ver o rádio. Depois que ele saiu daqui só as estações ímpares estão funcionando.

Atílio
D. Almerinda, nós não mexemos no rádio. Mas, tudo bem, eu vou pedir ao RCA Victor para vir até aqui, também.

Almerinda
Vocês estão me fazendo perder dinheiro. Sou barraqueira. Uso meu carro para levar as barracas para os clientes.

Atílio
Então, estão explicados os arranhões no teto do carro. São as barracas.

Almerinda
Sou barraqueira profissional. Forro muito bem o teto do carro. Dentro do carro levo as barracas pequenas, feitas por minha filha, Almerindinha, que é barraqueirinha.

Atílio
O dr. Gonzaga está chegando.

Dr. Gonzaga
Atílio, você ainda não resolveu o problema de nossa querida barraqueira?

Almerinda
Vamos combinar, dr. Gonzaga, esse Atílio é um zé-mané. Além dos reparos, vou querer quatro pneus novos. Só de vir até aqui eles estão ficando carecas.

Dr. Gonzaga
Atílio, libere aquele Meriva 0km para d. Almerinda.

Atílio
Mas....

Dr. Gonzaga
É isso mesmo. A gente fica com o carro dela e ela leva o Meriva. Mande o Alexandre providenciar os papéis.

Almerinda
Qual é o carro, dr. Gonzaga?

Dr. Gonzaga
Esse prata metálico, superluxo. Tração nas quatro rodas, computador de bordo, hélices que o transformam em um pequeno helicóptero, motor de submersão que faz dele um micro-submarino. Funciona com cinco combustíveis: álcool, gasolina, gás, eletricidade e água.
Satisfeita, d. Almerinda?

Almerinda
É, melhorou, mas tem essa manchinha aqui embaixo do farol.

Caminho

Todas as vezes que ouço The bends, do Radiohead, penso nos caminhos que este grupo poderia ter seguido.
OK Computer ainda é um grande disco.
De Kid A pra cá, no entanto, só engendraram merdas.
Merdas incensadas pela crítica.
Mas merdas.

segunda-feira, agosto 29, 2005

Homem de respeito

Delegacia de Ipanema, duas da tarde, Mariana, descontrolada, grita com o delegado.
- Ele me agarrou, tentou me estuprar.
Um senhor de meia-idade, acompanhado do advogado, defende-se:
- Doutor, estupro é exagero. Perdi a cabeça, admito. O senhor sabe, essas meninas andam vestidas com essas roupas insinuantes... Sou homem.
Mariana, 20 anos, belíssima, se indigna.
- Uso a roupa que quiser. Não há lei contra usar vestido curto. Este homem é meu vizinho, me agarrou no corredor do prédio e me arrastou para dentro do apartamento dele. Um outro vizinho me salvou.
O delegado olhou para Mariana e, como se a elogiasse:
- Você é muito bonita. Use roupas menos provocantes. O homem é estimulado pelo olhar. Vestido curto, sem sutiã... Eu mesmo, agora, estou perturbado com sua beleza. Seja mais prudente. Seu vizinho é um senhor distinto, respeitável. Esqueça o incidente. Ouça meu conselho: vista-se com mais pudor.

Feios

Formavam um casal feio.
Horrível, não: feio.
João e Maria eram desinteressantes. Invisíveis.
Vá lá se saber por que, Sharon, a menina mais cobiçada da escola, interessou-se por João.
As amigas tentaram tirar João da cabeça de Sharon. Mas ela cismou. Era uma predadora.
João nem tentou resistir. E a caçambinha do caminhãozinho dele foi soterrada pelo areal que era Sharon.
Maria chorou um pouco, mas o longo namoro com João a valorizou no mercado. Se fora namorada de João, o cara que estava pegando Sharon, deveria ter, embaixo do nada que se via, alguma coisa muito boa.
Logo Maria estava comendo Jordan. Era um imbecil, mas um tesão de rapaz.
João e Maria sentem saudades um do outro. Mas nem pensam em se procurar.
Gostam da vida de fudelanças incessantes.

sexta-feira, agosto 26, 2005

System of a Down


Li críticas favoráveis sobre o Audioslave e resolvi comprar o CD.
Arthur Dapieve (escreve em O Globo e NoMínimo) exaltava o grupo e aproveitava para desancar outros. Entre eles, o System of a Down. Mandei o texto via e-mail para o amigo André, luso-carioca que sabe tudo das últimas novidades musicais.
A resposta veio enfurecida: “Audioslave não é isso tudo. Cumé que esse crítico babaca põe no mesmo balaio o System e o Limp Bizkit”.
Fiquei curioso e comprei o Toxicity, do System. Impressionei-me, mas não muito.
Não tomei conhecimento do CD de sobras do grupo que saiu.
Comprei, recentemente, Mesmerize.
Não sai das minhas orelhas.
Como dizia um veterano crítico (antes da crítica tijolinho), os caras não deixam pedra sobre pedra.
É um disco de porrada lírica. Esporro harmônico, sacumé.
O System, me parece, está longe de brochar.
Sabe tudo o Andrezinho.

quinta-feira, agosto 25, 2005

Achei que meu pai fosse Deus

“Achei que meu pai fosse Deus” é um livro organizado pelo genial escritor norte-americano Paul Auster. Durante alguns meses ele esteve à frente de um programa de rádio. Lia, ali, histórias curtas enviadas pelos ouvintes. Algumas dessas histórias foram publicadas. Uma delas, reproduzo. Como dizem os novos letrados, impactou-me.


Uma lição não aprendida

Eu perdia tudo. Quer dizer, eu perdia ou destruía. Jóias. Bonecas. Jogos. O que caísse em minhas mãos eu mastigava, estropiava ou enviava para uma morte prematura. Eu comia papel e certa vez consumi um livro inteiro. Coitado do George Curioso, não ficou curioso por muito tempo perto de mim. Foi comido. Papai e mamãe me chamavam de “desastre instantâneo” para os objetos inanimados. E porque eu era tão bagunceira, eles sempre me colocavam à mesa ao lado dos convidados que não planejavam convidar de novo.
Um dia, no segundo ano primário, quando eu saía da escola, minha mãe me olhou surpresa. “Carol”, perguntou calmamente, mas com expressão confusa no rosto, “onde está seu macacão?” Olhei-me e vi meus sapatos de verniz de fivela, o collant branco que estava rasgado nos joelhos e o suéter branco (mas sujo) de gola rulê. Até que minha mãe falasse, eu não havia notado que não estava completamente vestida. Fiquei tão surpresa quanto ela, pois lembrava bem que vestira o macacão naquela manhã. Minha mãe e eu fomos até a escola, olhamos nas calçadas, nos corredores e no playground, mas não achamos o macacão de lã.
No inverno seguinte, meus pais me compraram um casaco de pele sintética com um chapéu combinando. Adorei meu casaco e meu chapéu novos e me sentia como uma moça ao usar o casaco, porque ele não vinha acompanhado por luvas com separação somente para o polegar. Eles queriam me comprar um casaco com capuz, porque sabiam como eu era, mas implorei e prometi que seria cuidadosa e não perderia o chapéu. Adorei especialmente os grandes pompons de pele na ponta do atilho do chapéu.
Um dia, meu pai chegou do trabalho e me chamou na sala. Inclinou-se e me abraçou, e depois me pediu que vestisse o casaco e o chapéu novos para que ele visse. Corri escada acima, saltando de dois em dois degraus, louca para me exibir para o meu pai. Vesti o casaco, mas não consegui achar o chapéu. Olhei nervosamente embaixo da cama e no closet, mas não estava em lugar algum. Talvez ele não notasse que eu estava sem chapéu.
Voei escada abaixo e desfilei como se estivesse numa passarela, com poses e sorrisos, exibindo meu casaco novo para meu pai, que me dedicava toda a sua atenção e me dizia como eu estava linda. Então, ele disse que queria ver o chapéu também. “Não, papai, quero mostrar só o casaco. Olhe só como o casaco fica em mim!”, disse eu, requebrando pelo corredor e tentando evitar o assunto do chapéu desaparecido. Eu sabia que aquilo daria encrenca. Ele estava dando umas risadinhas e eu me achei adorável e amada porque ele estava rindo e brincando comigo. A história do chapéu se repetiu umas duas vezes e de repente, no meio do riso, papai me bateu. Ele me deu um tapa na cara e eu não entendi o porquê. Ao ouvir o barulho do tapa, minha mãe gritou: “Mike! O que você está fazendo?! O que você está fazendo?!". Ela estava esbaforida e atônita. A fúria de meu pai machucara tanto minha mãe como eu. E fiquei ali, com a mão no meu rosto que ardia, chorando. Então, ele tirou meu chapéu novo do bolso do seu casaco. Achara-o na rua e, enquanto me olhava por cima dos óculos, disse: “Quem sabe agora você aprende a ser mais cuidadosa e a não perder as coisas”.
Sou uma adulta agora, e ainda perco coisas. Ainda sou descuidada. Mas o que meu pai me ensinou naquele dia não foi responsabilidade. O que eu aprendi foi a não confiar em seu riso. Porque até a risada dele dói.

Carol Shennan-Tones
Covington, Kentucky

Convite

Dudu foi convidado para uma suruba.
Pensou bem e resolveu não ir.
Desconfiou que o Tião estava querendo seu cu.

X-9

– Mas era só um garoto... Tinha uns doze?
– Treze. Idade mais ou menos comum do negro, favelado e carioca morrer.
– Vivia enfurnado na igreja, com aquele papo de aceita Jesus e ele vai transformar sua vida.
– Era da religião mas também andava no movimento. A transformação que ele queria era dinheiro.
– Ele mesmo dizia que não dava pra servir a dois senhores, lembra?
– Claro, mas por que um dos senhores puxou a ficha dele?
– Era X-9. Um Judas. A polícia deu um bote na boca. Levaram dinheiro e pó. O moleque foi pago com pó. O pó que a polícia passou pro garoto ele quis vender pra bandidagem. A embalagem o dedurou. Apanhou demais antes de morrer.
– Que azar, hein?
– Nada de azar. Aqui se faz, aqui se paga.
– Tá legal. Diga isso pra esse bando de corrupto que suga o país. Eles fazem e se alguém paga somos nós.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Uau!

"Na romaria de Lamego, Branca contara-lhe que perdera a virgindade e um brinco de bolinha".
Uma frase exata de Agustina Bessa-Luis, em Vale Abraão

Sem raça definida

Vejo crianças, as mais velhas com 10, 11 anos, saírem da Favela da Galinha pela abertura que o tráfico fez no muro do conjunto habitacional onde moro.
Bebo cerveja com os amigos. A primeira de muitas.
– Essa garotada não estaria largada na rua se na escola houvesse atividades para elas. Só educação salva essa turma.
Geninho, bebendo cerveja, só tolerava dois assuntos: mulher e futebol.
– Esses moleques não querem nada com escola. A parada deles é vagabundear e roubar. E o Flamengo?
Já começava a anoitecer. Enxergava através de uma névoa. Efeitos do álcool. As crianças voltavam.
– Maluco, este celular é daquele que tira fotos. Aquele mané com um celular duca como esse. Que desperdício...
Geninho não perdeu a oportunidade.
– Escola o cacete, o negócio deles é roubar. Vão parar quando levarem um tiro. Essas crianças não têm jeito.
Estava sem força e sem ânimo para discutir. Olhei para o bando que se afastava e ainda pude ver o menorzinho do grupo se abaixar e ficar para trás, acariciando um cão vira-latas.

Intencionalidade

Meu mozinho avisou:
– Tá ridículo, tênis e camiseta vermelha. Se enxerga, põe uma roupa mais sóbria.
– Sóbrio, eu... Qualé?
Os dois neguinhos (afro-brasileirinhos?) parece que também não gostaram do vermelho.
– Ô tio, o pessoal do 3º Comando não gosta de vermelho.
– E eu com isso? Tô cagando pro exército. A ditadura já acabou há muito tempo. Comunismo, vermelho, isso já foi.
– Tio, cê é folgado. A turma do 3º vai te tirar essa camisa pelo rabo.
– Não há mais espaço pro arbítrio. Sou cidadão em uma democracia. Vou onde quero, do jeito que quero. Os militares que cumpram suas obrigações.
Os moleques desistiram de mim, mas outros três baitolões que estavam perto, não. Me encheram de porrada e ameaçaram:
– Da próxima vez que aparecer de vermelho por aqui, morre.
Meu mozinho fazia os curativos e ouvia minhas lamúrias:
– Tudo secreta. Nenhum deles estava de uniforme. Tão caçando comunistas de novo.

sexta-feira, agosto 19, 2005

Seinfeld


Série genial.
Elenco de primeira linha.
Roteiro, em alguns episódios, irretocável.
Mas a graça estava na competência do elenco em “traduzir” o que era escrito.
Os quatro amigos, juntos, são insuperáveis.
Depois de Seinfeld, só quem ainda não pagou mico sozinho foi Jerry Seinfeld.
O dinheiro que ainda continua ganhando com a série dá prele viver coçando o saco até morrer com 300 anos de idade.

O topo

Como se chega ao topo de uma organização?
Competência e criatividade não levam você até lá.
Sexo? Bem, sexo pode fazer com que você chegue perto do topo. No topo, não.
A vida corporativa é misteriosa.
Não é para inocentes, ingênuos, bem-intencionados...
Uma qualidade de quem está no topo é uma certa dose de canalhice.
Sangue-frio e desfaçatez também são requisitos dos senhores de escravos.
Mas o que eu gostaria mesmo é de saber como se chega lá.
Não que eu tenha interesse em estar no pico da montanha.
Falta-me disposição.
Estou velho.
E acho que é necessário deglutir o indeglutível.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Mais do mesmo

Começo de expediente é, quase sempre, a mesma merda.
Na realidade, o expediente começa, pelo menos para mim, umas duas horas antes.
5h45 estou de pé. Lanço uma maldição sobre o desgraçado que me obriga a levantar tão cedo e vou ao banho.
O cachorro já está esperando para a mijadinha matinal.
Serviço feito, encaro o metrô.
Metrô é perde-e-ganha.
Um dia sua bunda é sarrada, no outro você sarra uma bunda.
Um dia você é recheio de sanduíche, no outro você é um dos pães.

Começo de expediente é, quase sempre, a mesma merda.
É neste momento que você engendra como vai enrolar o dia inteiro.
Claro que você lida com mediocridades o dia inteiro.
Óbvio que você crê que merecia um destino melhor.
Mas aí você lembra que está no Brasil e seus parentes são ninguém.
De certa forma, você é um privilegiado.
E tem a hora do almoço.
Você trabalha perto de uma escola.
Estudantes adolescentes são tão bonitinhas.
Olhe pra elas. Pras coxinhas, pros peitinhos, pras bundinhas.
Não pode pôr a mão. É encrenca.
Olhe pra elas. Um dia elas estarão como você.
E lamentarão o tempo perdido.
Perdido não se sabe onde.
Começo de expediente é uma merda.

terça-feira, agosto 16, 2005

Gordo Falante

Volto em novo lar.
Lá fora a crise tá braba.
Tô meio desanimado, mas ainda bem que não sou a sanguessuga no cu do hipopótamo.