quinta-feira, agosto 25, 2005

Achei que meu pai fosse Deus

“Achei que meu pai fosse Deus” é um livro organizado pelo genial escritor norte-americano Paul Auster. Durante alguns meses ele esteve à frente de um programa de rádio. Lia, ali, histórias curtas enviadas pelos ouvintes. Algumas dessas histórias foram publicadas. Uma delas, reproduzo. Como dizem os novos letrados, impactou-me.


Uma lição não aprendida

Eu perdia tudo. Quer dizer, eu perdia ou destruía. Jóias. Bonecas. Jogos. O que caísse em minhas mãos eu mastigava, estropiava ou enviava para uma morte prematura. Eu comia papel e certa vez consumi um livro inteiro. Coitado do George Curioso, não ficou curioso por muito tempo perto de mim. Foi comido. Papai e mamãe me chamavam de “desastre instantâneo” para os objetos inanimados. E porque eu era tão bagunceira, eles sempre me colocavam à mesa ao lado dos convidados que não planejavam convidar de novo.
Um dia, no segundo ano primário, quando eu saía da escola, minha mãe me olhou surpresa. “Carol”, perguntou calmamente, mas com expressão confusa no rosto, “onde está seu macacão?” Olhei-me e vi meus sapatos de verniz de fivela, o collant branco que estava rasgado nos joelhos e o suéter branco (mas sujo) de gola rulê. Até que minha mãe falasse, eu não havia notado que não estava completamente vestida. Fiquei tão surpresa quanto ela, pois lembrava bem que vestira o macacão naquela manhã. Minha mãe e eu fomos até a escola, olhamos nas calçadas, nos corredores e no playground, mas não achamos o macacão de lã.
No inverno seguinte, meus pais me compraram um casaco de pele sintética com um chapéu combinando. Adorei meu casaco e meu chapéu novos e me sentia como uma moça ao usar o casaco, porque ele não vinha acompanhado por luvas com separação somente para o polegar. Eles queriam me comprar um casaco com capuz, porque sabiam como eu era, mas implorei e prometi que seria cuidadosa e não perderia o chapéu. Adorei especialmente os grandes pompons de pele na ponta do atilho do chapéu.
Um dia, meu pai chegou do trabalho e me chamou na sala. Inclinou-se e me abraçou, e depois me pediu que vestisse o casaco e o chapéu novos para que ele visse. Corri escada acima, saltando de dois em dois degraus, louca para me exibir para o meu pai. Vesti o casaco, mas não consegui achar o chapéu. Olhei nervosamente embaixo da cama e no closet, mas não estava em lugar algum. Talvez ele não notasse que eu estava sem chapéu.
Voei escada abaixo e desfilei como se estivesse numa passarela, com poses e sorrisos, exibindo meu casaco novo para meu pai, que me dedicava toda a sua atenção e me dizia como eu estava linda. Então, ele disse que queria ver o chapéu também. “Não, papai, quero mostrar só o casaco. Olhe só como o casaco fica em mim!”, disse eu, requebrando pelo corredor e tentando evitar o assunto do chapéu desaparecido. Eu sabia que aquilo daria encrenca. Ele estava dando umas risadinhas e eu me achei adorável e amada porque ele estava rindo e brincando comigo. A história do chapéu se repetiu umas duas vezes e de repente, no meio do riso, papai me bateu. Ele me deu um tapa na cara e eu não entendi o porquê. Ao ouvir o barulho do tapa, minha mãe gritou: “Mike! O que você está fazendo?! O que você está fazendo?!". Ela estava esbaforida e atônita. A fúria de meu pai machucara tanto minha mãe como eu. E fiquei ali, com a mão no meu rosto que ardia, chorando. Então, ele tirou meu chapéu novo do bolso do seu casaco. Achara-o na rua e, enquanto me olhava por cima dos óculos, disse: “Quem sabe agora você aprende a ser mais cuidadosa e a não perder as coisas”.
Sou uma adulta agora, e ainda perco coisas. Ainda sou descuidada. Mas o que meu pai me ensinou naquele dia não foi responsabilidade. O que eu aprendi foi a não confiar em seu riso. Porque até a risada dele dói.

Carol Shennan-Tones
Covington, Kentucky

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