terça-feira, abril 30, 2013
SAGAS INCOMPLETAS
Na década de 60, Frank Herbert lançou Duna, portentoso romance de ficção científica. Aqui no Brasil, saiu em 1984. Minha chefinha, Joseti Marques, me encarregou de fazer a leitura do livro em terceira revisão. Revisaria Duna de graça.
Seguiram-se a Duna, no Brasil, três outros romances (lá fora, cinco). De vez em quando, folheio estes livros que vivem aqui em casa há 40 anos (se fosse e-book, sei não). Antes de dar a saga por concluída, Herbert morreu, em 1986.
A Guerra dos Tronos, série de sete livros previstos, corre sério risco de não ter fim, exatamente pelo mesmo motivo de Duna (a diferença: Duna foi um romance muito melhor do que suas continuações, o que não é o caso de A Guerra dos Tronos que segue firme em alto nível).
George R.R. Martin está com 65 anos e leva cerca de cinco para escrever cada volume. Por enquanto, está estacionado no nº 5. A HBO que fez um resumão dos volumes e os transformou em série de muito sucesso, já pensa em mudar o critério que adotou (1 volume = 1 temporada) para ganhar mais tempo (1 volume = duas temporadas).
Cabe a nós, admiradores da obra de Martin, torcer para que estejamos vivos (nós e ele) quando o cara pôr o ponto final em sua saga.
INCOMPETÊNCIA
Evito assistir a filmes em versão dublada. Séries de TV, no entanto, corro das legendadas. Percebi isso, parece mentira, domingo passado.
O seriado Games of Thrones passa em versão original no HBO e dublada no HBO2, no mesmo horário. Sempre opto pelo HBO2.
A explicação é simples: a legendagem nos canais por assinatura é pavorosa. Já li, várias vezes, comentários de Patrícia Kogut, que assina uma boa coluna de televisão em O Globo, criticando o desleixo das operadoras com as legendas de suas séries. Se nem a ela, articulista do Império, ouvem...
Sintonize sua TV na Warner, no Sony, no AXN e, certamente, você verá filmes com legendas faltando, dessincronizadas ou ausentes. Canais como a Fox (que tem boa legendagem) oferecem alternativa de áudio e, mesmo assim, prefiro assistir às séries dubladas.
Um filme em som original é infinitamente melhor do que sua versão dublada, mas acabamos nos acostumando com e preferindo o pior. É um assunto corriqueiro, mas ilustra bem o espírito de nossa época: o do triunfo da mediocridade.
segunda-feira, abril 29, 2013
EGO
O pai, amargurado, chama o filho para uma conversa:
– Filho, fiz o que seu avô, meu pai, me disse que
seria o certo. Fui honesto, solidário, jamais prejudiquei alguém. Não de caso
pensado. Você viu aonde cheguei. Se é isso que quer para sua vida... Se não,
siga em sentido oposto ao que escolhi.
O filho olhou em volta e viu o que já tinha visto: o
pai era um perdedor. A vida virtuosa o levara à amargura, à autocomiseração, à pobreza
e à frustração. Amigos do pai, orgulhosos de falcatruas perpetradas, viviam folgadamente.
O filho, junto com amigos, entendeu que assaltar um
restaurante era boa forma de começar a carreira de crimes. Um roubo simples,
escondidos atrás de bonés e óculos escuros. Seria o começo. Um erro e a morte
veio. A mulher armada. Tiro certeiro.
O pai se surpreendeu. Não esperava que o filho o
ouvisse. Há muito tempo ninguém o ouvia. Os amigos falavam. Impacientes, não o
ouviam, ansiosos para que ele se calasse e prestasse atenção nas merdas que
diziam.
A morte do filho o entristeceu. O orgulho, no
entanto, sobrepujou a tristeza. Por que não acreditou que teria a atenção do
filho? Não teria sido tão lacônico. Explicaria, pormenorizadamente, que tipo de
desonesto deveria ser. Os grandes ladrões, as aves de rapina da humanidade eram
dissimulados.
O ladrão que nunca vai para a cadeia aparenta
honestidade. É religioso e o deus que adora é o EU. Desvia dinheiro de doentes
terminais, flagelados das chuvas, vítimas da seca, merenda escolar, sem sentir
nenhuma culpa.
Teria perguntado ao filho até onde ele estaria disposto
a ir. Se percebesse hesitação no garoto o incentivaria a se preparar um pouco
para participar de licitações fraudulentas, disseminar a intriga no ambiente de
trabalho e ficar atento a todas as oportunidades de participar de esquemas
desonestos.
Ah, por que não conversou mais com o filho? Quanta
coisa poderia ter-lhe ensinado. Sabia toda a teoria. Vira tantos corruptos
prosperarem.
O filho estava morto, a esposa o deixara há muito
tempo. Estava só. Aos 50 anos, o que poderia fazer? A boa saúde lhe indicava
que ainda viveria, quem sabe?, uns 30 anos. Perdera o filho e, antes de fazer o que
deveria ser feito, pediria perdão ao pai morto.
No fundo do quintal da casa havia um quartinho sem
uso. Construiria nele um altar para seu novo deus: EU. Seria tão fiel a ele
quanto fora a outros deuses em seus primeiros 50 anos de vida. Os próximos 30
seriam mais prósperos.
domingo, abril 28, 2013
LOURAÇA NO SAMBA
Cá pra nós, quem vive sem amigos? Mas amigos nos deixam em
roubadas indescritíveis. Como são amigos, a gente perdoa.
Tradição do Samba me convidou para uma de suas apresentações
musicais. Era cantor dos bons. A música que ele cantava... Meu Deus!!!
Não ia dar pra encarar sozinho. Convoquei o Velho Roqueiro
como acompanhante.
– Porra, Gordo, roqueiro em roda de samba. Ainda mais com o
Tradição. A gente não se topa. Você ‘tá na bronca comigo por algum motivo?
– Velho, já fiz sacrifícios maiores por você. Chamei o Homem
de Preto, mas a mulher dele embarreirou. É você mesmo.
Fomos. Tradição estranhou a presença do Velho, mas não
deixou de ficar satisfeito.
– Hoje, você ouvirá boa música. Obras engendradas com
sentimento.
– Ó!
O Velho, para não agredir, monossilabava.
O cenário da apresentação era o salão da casa do Tradição.
Cadeiras em círculo em que descansariam as bundas dos vinte e poucos
espectadores e, no centro, espaço para os artistas.
Sentamos. Do lado do Velho alojou-se uma louraça. Bonitona. Uns
cinquenta anos. Uma lolita diante dele.
No centro, logo a nossa frente, o pandeirista se preparava.
Retirou seu instrumento de um estojo de couro trabalhado e o acariciou com
ternura. Parecia que apalpava as coxas de Juliana Paes. Os dedos tamborilavam a
pele do pandeiro. Fez umas presepadas, pegou um copo de cerveja e lançou um
sorriso torto para seu colega de cavaquinho. O único sorriso que vi. O grupo de
samba do Tradição era seriíssimo.
Violões, cavaquinho, bandolim, pandeiro, tamborim, cuíca.
Faltava o cantor.
Tradição chegou e dirigiu-se ao centro da roda.
No meu ouvido, o Velho murmurou:
– O sambeiro gosta de entrada triunfal.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! – o do pandeiro não admitia
conversa.
Percebi que a turma se levava a sério. Previ aporrinhações.
– Gordo, vamunessa, vou dar um pau nesse babaca.
Tradição começou a cantar: “Bate outra vez, a esperança do
meu coração...”
– Gordo, é sério, você vai ficar sozinho.
Do lado do Velho, a louraça sussurrou no ouvido do ancião.
– Não vá não. Mais pro final, melhora.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!
O Velho quando se emputece fecha o tempo. Normalmente, entra
na porrada. Cuidar das escoriações acaba sobrando pra mim.
– Tá legal, Velho, vambora, depois me explico com o
Tradição.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
– Gordo, vamos ficar, surgiu uma situação.
Desta vez a música parou. Tradição nos deu um esporro. Falta
de respeito com a música de raiz.
Desculpei-me com a plateia, o conjunto, peguei o Velho pelo
braço e levei-o para fora.
– Que situação?
– Vou ver se pego a loura.
– Velho, nas duas últimas trepadas você quase morreu.
– Exagerei no azulzinho.
– Você vai morrer.
– Seria uma morte gloriosa.
Voltei para a sala, desculpei-me, novamente, e prometi
silêncio.
O Velho, na orelha da loura:
– Vamos sair daqui? Tomar um chopinho e quem sabe o que
mais.
Loura sacana. Piscou pro Velho e arrematou:
– Não sou assassina. Na cama, eu mataria você.
O Velho levantou-se, interrompeu o suingue de Tradição e
saiu. Fui atrás dele.
- E a situação?
- Esqueça. Vou dar uma passada na Isaura. Se morrer, hoje,
não me será penoso.
sexta-feira, abril 26, 2013
RATÃO
– Cardoso, você parece que come merda. Por que você sentou no lugar do Ratão?
– Sabia lá que era lugar do Ratão. Cheguei da casa da mãe, vi o movimento na quadra, lembrei do jogo do Dia dos Pais e resolvi dar uma olhada. Estava cheião, vi o lugar vazio no meio da arquibancada, fui pra lá e sentei.
– Cara, não chama a arena de quadra. O Ratão já mandou matar por causa disso.
– Arena pra mim é aquela porra de romano, grego, turco, sei lá.
– Você sentou do lado da Madá, mulher do Ratão. O lugar do lado dela é dele. Você não sabe disso?
– Sabia não. Se soubesse, cê acha que ia sentar lá. Mas fiquei longe dela. Tinha o maior espação. Não encoxei a dama, de jeito nenhum.
– Se encoxasse tava morto.
– Sei não, ela me deu umas olhadas. E, ó, ela não falou que não podia sentar do lado dela. Ninguém falou.
– Todo mundo sabe que não pode. O Ratão, quando mandou construir a arena na comunidade, avisou que aqueles dois lugares jamais poderiam ser ocupados.
– Foi a primeira vez que fui na quadra.
– Arena, caraio. Eles não querem saber disso. Se manda, ouvi um zunzunzum que vão te dar uma lição.
– Porrada?
– Matar, pra dar exemplo. A Madá ficou muito chateada.
– Do outro lado dela tinha uma mina sentada.
– O lado direito dela pode ser ocupado. O esquerdo é do Ratão.
– Vou morrer por causa disso? E se eu falar com o Ratão?
– O Ratão tá preso há três anos. Pegou um gancho de 20. Você é desligado, mesmo.
– Vou ficar na casa da minha mãe.
– O Ratão vai sair no Natal pra visitar a família. Não vai voltar, claro. Levo um papo com ele.
– Valeu.
– Agora, cai fora. Não vai nem em casa. O pessoal tá querendo mostrar trabalho. No indulto de Natal saem mais uns quatro da elite. Quem tá aqui fora precisa deixar claro pro Ratão que tem valor. Ah, se eu quebrar essa pra você, daqui pra frente procure conhecer melhor as leis da comunidade. As lá de fora ninguém respeita. Já as daqui...
– Sabia lá que era lugar do Ratão. Cheguei da casa da mãe, vi o movimento na quadra, lembrei do jogo do Dia dos Pais e resolvi dar uma olhada. Estava cheião, vi o lugar vazio no meio da arquibancada, fui pra lá e sentei.
– Cara, não chama a arena de quadra. O Ratão já mandou matar por causa disso.
– Arena pra mim é aquela porra de romano, grego, turco, sei lá.
– Você sentou do lado da Madá, mulher do Ratão. O lugar do lado dela é dele. Você não sabe disso?
– Sabia não. Se soubesse, cê acha que ia sentar lá. Mas fiquei longe dela. Tinha o maior espação. Não encoxei a dama, de jeito nenhum.
– Se encoxasse tava morto.
– Sei não, ela me deu umas olhadas. E, ó, ela não falou que não podia sentar do lado dela. Ninguém falou.
– Todo mundo sabe que não pode. O Ratão, quando mandou construir a arena na comunidade, avisou que aqueles dois lugares jamais poderiam ser ocupados.
– Foi a primeira vez que fui na quadra.
– Arena, caraio. Eles não querem saber disso. Se manda, ouvi um zunzunzum que vão te dar uma lição.
– Porrada?
– Matar, pra dar exemplo. A Madá ficou muito chateada.
– Do outro lado dela tinha uma mina sentada.
– O lado direito dela pode ser ocupado. O esquerdo é do Ratão.
– Vou morrer por causa disso? E se eu falar com o Ratão?
– O Ratão tá preso há três anos. Pegou um gancho de 20. Você é desligado, mesmo.
– Vou ficar na casa da minha mãe.
– O Ratão vai sair no Natal pra visitar a família. Não vai voltar, claro. Levo um papo com ele.
– Valeu.
– Agora, cai fora. Não vai nem em casa. O pessoal tá querendo mostrar trabalho. No indulto de Natal saem mais uns quatro da elite. Quem tá aqui fora precisa deixar claro pro Ratão que tem valor. Ah, se eu quebrar essa pra você, daqui pra frente procure conhecer melhor as leis da comunidade. As lá de fora ninguém respeita. Já as daqui...
POR ONDE ANDA O GUARDA-CABAÇOS?
Lá pelo final da década de 60, havia um personagem que gozava
(aliás, pouco gozava) da antipatia dos jovens heterossexuais: o guarda-cabaço.
O guarda sempre estava ao lado da jovenzinha mais cobiçada, não a deixava por
nada, acompanhava-a por todos os cantos, principalmente na escola.
Há 50 anos este era outro mundo. Um mundo em que cabaços tinham alto
valor. Mundo machista, sim, mas, em muitos aspectos, um lugar mais seguro para
se viver. O mundo em que perambulava, patético, o guarda-cabaço.
O guarda-cabaço, na maioria das vezes, não era gay (não era fácil
ser gay na década de 60). Era, sim, sempre, muito solícito. A dona do cabaço
que guardava tinha dele toda a atenção. Copiava a matéria para a portadora do
hímen a necessitar de proteção, explicava os pontos das aulas não entendidos
por sua protegida e levava sempre na pasta um belisquete apreciado pela
queridinha.
O que ganhavam os guarda-cabaços? A companhia das tirânicas
deusinhas, certamente. Pouquíssimos papavam a protegida, que quase sempre era
inaugurada por um boçal boa pinta e sem noção. Mas mesmo pros boçais bonitões a
vida não era fácil. Ali pelos 15, 16 anos quase toda jovenzinha mantinha sua
tampinha no lugar. Não é como hoje.
Mais tarde passei a gostar tanto da companhia feminina que poderia,
facilmente, ser confundido com um guarda-cabaço. Tive algumas amigas com quem
nunca me envolvi sexualmente, andava com elas para cima e para baixo, mas sem
me preocupar com suas vidas afetivas. Mulheres são mais ricas,
intelectualmente, do que homens. No tempo de colégio, no entanto, não era
guarda nem pegador. Observava, apenas.
Estudava no Brigadeiro Schorcht, na Taquara, e via sempre a chegada
de um notável guarda-cabaço e sua protegida. O amigo de xadrez era apaixonado
pela menina, mas o vigilante zagueiro lhe dava poucas oportunidades de
aproximação. Do grêmio onde jogávamos, via o guarda chegando com a donzela. As
amiguinhas se aproximavam e ele ficava por ali, borboleta a voltear a flor. Ela
saía e ele acompanhava. Na cantina, ela sentava-se à mesa enquanto o pateta
buscava o lanchinho da princesinha. Se um pegador se aproximava, o empata-foda
se apressava e antes de o devorador desferir qualquer engodo lá estava ele,
beija-flor a bicar florezinhas, para atrapalhar. Dentro da sala de aula,
sentava-se na carteira logo atrás do objeto de sua veneração. Dali vigiava os
movimentos dos papões. Os guardas têm, todos, comportamento semelhante. O
guarda do Brigadeiro foi derrotado. Meu amigo, persistente, pintosão e rico
perdeu a paciência, atacou a menininha e deixou o guarda desempregado.
Guardadores de cabaço não existem mais. São personagens de outro
mundo, outro tempo. Hoje não há mais cabaços para guardar. As que ainda os
preservam sentem-se envergonhadas por isso.
Eu achava que sentia aversão pelos guarda-cabaços. Não era assim.
Talvez tivesse inveja daquelas figuras que faziam tudo pelo objeto de adoração.
Ganhavam da lindinha, como prêmio, um sorriso, um gesto carinhoso e de todos os
outros o desprezo. Viviam sem se preocupar com a maioria, escravos apenas de
seus sentimentos. Invejava-os porque sempre dei muita importância à opinião
alheia, como fazem muito bem os medíocres.
quarta-feira, abril 17, 2013
DEUS ME CHAMOU
Assisti no Agora é Tarde, apresentado por Danilo Gentili, na Band, à entrevista de Alexandre Canhoni, ex-paquito, que se converteu na década de 90. Dito por ele: “Deus me chamou para trabalhar com crianças no país de pior IDH do mundo. Fui e fiquei por lá.”
Canhoni diz que vem ao Brasil somente para divulgar o trabalho e cuidar da saúde. O resto do tempo, junto com a esposa, cuida de centenas de crianças, cinco delas adotadas por ele e a mulher.
O Níger é 99% islâmico e hostil aos cristãos. “Temos problemas, mas somos respeitados”, ele disse a Gentili.
Muito raramente ouço relatos críveis de pessoas que foram chamadas por Deus para cumprir algum mandato. O comum é alguém fazer o que quer e, por julgar seu desejo um tanto mundano, afirmar com olhos lacrimejantes e voz trêmula que cumpre a vontade de Deus.
Exemplifico. Um pastor faz excelente trabalho em determinado lugar, toca projetos que demandaram sacrifício de sua igreja (projetos justificados pelo reverendo como “da vontade de Deus”) e ganha, vá lá, míseros R$ 5 mil. Surge o convite de uma igreja maior. Apartamento, automóvel, plano de saúde, vale refeição... O pastor se manda e diz que vai atender o chamado do Senhor. Não me incomoda a saída do pastor, me irrita o discurso hipócrita. O pastor deveria agir como homem e dizer: “Saio porque lá ganharei mais e terei melhores condições de vida.”
Também me causa engulhos a conversinha: “Não ‘trabalho’ em instituição religiosa. Para mim é ministério. Deus me chamou. Várias empresas me querem e me pagariam dez vezes mais o que ganho aqui, mas sinto que Deus me quer em sua obra.”
Lorota. Lorota. Lorota.
Pode ser que, amanhã ou depois, venha saber da falta de sinceridade de Alexandre Canhoni. Acho difícil. Viver no Níger é duríssimo. Deserto do Saara, sertão do Nordeste muitíssimo piorado. Absoluta falta de recursos. O cara tem de acreditar que foi enviado para lá por Deus. Mesmo que Deus não tenha nada com a história e tudo não passe de delírio dele.
Canhoni diz que vem ao Brasil somente para divulgar o trabalho e cuidar da saúde. O resto do tempo, junto com a esposa, cuida de centenas de crianças, cinco delas adotadas por ele e a mulher.
O Níger é 99% islâmico e hostil aos cristãos. “Temos problemas, mas somos respeitados”, ele disse a Gentili.
Muito raramente ouço relatos críveis de pessoas que foram chamadas por Deus para cumprir algum mandato. O comum é alguém fazer o que quer e, por julgar seu desejo um tanto mundano, afirmar com olhos lacrimejantes e voz trêmula que cumpre a vontade de Deus.
Exemplifico. Um pastor faz excelente trabalho em determinado lugar, toca projetos que demandaram sacrifício de sua igreja (projetos justificados pelo reverendo como “da vontade de Deus”) e ganha, vá lá, míseros R$ 5 mil. Surge o convite de uma igreja maior. Apartamento, automóvel, plano de saúde, vale refeição... O pastor se manda e diz que vai atender o chamado do Senhor. Não me incomoda a saída do pastor, me irrita o discurso hipócrita. O pastor deveria agir como homem e dizer: “Saio porque lá ganharei mais e terei melhores condições de vida.”
Também me causa engulhos a conversinha: “Não ‘trabalho’ em instituição religiosa. Para mim é ministério. Deus me chamou. Várias empresas me querem e me pagariam dez vezes mais o que ganho aqui, mas sinto que Deus me quer em sua obra.”
Lorota. Lorota. Lorota.
Pode ser que, amanhã ou depois, venha saber da falta de sinceridade de Alexandre Canhoni. Acho difícil. Viver no Níger é duríssimo. Deserto do Saara, sertão do Nordeste muitíssimo piorado. Absoluta falta de recursos. O cara tem de acreditar que foi enviado para lá por Deus. Mesmo que Deus não tenha nada com a história e tudo não passe de delírio dele.
segunda-feira, abril 15, 2013
VAI TUDO BEM
Comunidade tensa, irrequieta, sobressaltada. Madrugada de tiroteio.
Pai e mãe deram uma olhada do lado de fora. Aparece o sol, a calma volta. A mãe
prepara o café. O filho volta da padaria. Chegam pão, manteiga e informações.
– Tem uns 20 mortos no campinho. Muito policial por lá.
A mãe quer saber:
– Algum conhecido?
O pai interrompe:
– Quem entrou na comunidade: polícia ou invasores?
O filho, seguro:
– O pessoal do Sufoco. Mãe, o Diguinho e o Digão, do Beco Marcelo
Freixo, tombaram.
A mãe, consternada:
– Não falei pra você não andar com eles. Mãe não erra.
O filho contesta:
– Deram azar, mãe. O Digão estava esperando o Diguinho aí na entrada da
comunidade. Todo dia ele espera o irmão voltar do curso. Os caras cruzaram com
eles e não quiseram saber.
O pai, pragmático:
– O que será que nos espera? Cada vez que muda o comando há novas
regras para obedecer. Qual a cor que eles prezam? Vamos guardar as roupas amarelas, mas
precisamos saber quais as cores que podemos usar.
A mãe, cautelosa:
– Hoje, é dia de vestir roupa branca. Até o almoço chega o comunicado
com as novas posturas da comunidade.
À mesa, a família toma o café. A mãe se orgulha daquele ritual de
família. Pela manhã e à noite, a família se reúne em volta da mesa. Sábados e
domingos, não. Há anos cumprem essa rotina. O filho é o primeiro a acordar, se
apronta, vai buscar o pão, toma o café da manhã com os pais e sai para o
trabalho. A mãe lamenta o filho ter abandonado os estudos. Concluiu o ensino
médio e não quis saber de faculdade. Em compensação, fez vários cursos, arranha
no Inglês e ganha um salário razoável como técnico em eletrônica numa empresa
sólida do Centro.
O marido é pedreiro. Dos melhores. Responsável, confiável, não lhe
falta serviço.
Ela é dona de casa. Mantém a casa de dois quartos um brinco. É
obsessiva com limpeza. Jamais imaginou que moraria em uma favela, mas quando
chegou o lugar era umas 100 vezes menor. O marido pedreiro dispôs de bom espaço
para construir a casa. Tinha fundação para subir mais dois andares. Quando o
filho casasse, se quisesse, e a mulher aprovasse, o pai faria um andar para ele.
Em 25 anos a favela tornou-se uma pústula. Ferida aberta,
malcheirosa. A parte mais baixa, onde morava, bem melhor do que o interior,
morro acima. Isso ela sabia de ouvir dizer. Nunca se interessou em se atirar
nas entranhas da comunidade. Não tinha muitas amigas. Conversava com duas, três
vizinhas. Papo trivial. Saía para ir ao médico, visitar a mãe, pegar uma matinê
nos cinemas do shopping do bairro. A família chegou a ter um carro. Desistiram
de automóvel quando um vizinho foi obrigado a levar um ferido de guerra ao
hospital. O ferido morreu dentro do veículo e, antes de conseguir explicar o
que aconteceu, o vizinho apanhou muito dos homens da lei.
O pai quebrou o silêncio à mesa:
– É certo que o Sufoco venceu a batalha?
O filho, didático:
– O Armando, da padaria, me disse, na encolha, que na pracinha só
tem defunto daqui. O pessoal se mandou. Vão se organizar para tentar retomar,
mas isso demora.
O pai, intrigado:
– O Armando sabe das coisas, né?
O filho, surpreso com a observação do pai:
– E sabe mesmo. É comerciante, precisa se manter informado. Ele me
disse que demora pros caras se organizarem porque eles não têm aliados na
região. Todas as comunidades em volta estão com o mesmo pessoal do Sufoco.
A mãe, precavida:
– Importante é manter a discrição. Vamos aguardar as instruções dos
novos governantes e fazer o que sempre fizemos: obedecer.
O filho, em um rasgo de entusiasmo:
– Vou poder trazer a namorada pra vocês conhecerem. De repente,
dependendo de como as coisas andarem, trago ela aqui pra almoçar no domingo. Os
caras não deixavam namorar ninguém de facção rival.
A mãe, assustada:
– Filho, calma. Vamos esperar um pouquinho. O Armando não sabe de
tudo.
A mãe estava certa, o filho sabia. Conhecera a namorada no ônibus.
Viu e se apaixonou. Trocou umas palavras com ela. Sentiu que agradou. Três dias
depois a encontrou novamente. Não perdeu tempo: levantou nome, telefone,
endereço. Foram ao cinema, comeram uma pizza, trocaram beijinhos comportados.
Fez uma graça, levou-a de táxi para casa. Ela abriu o jogo e disse que o
endereço que passara para ele era de uma prima. Na verdade, morava no Sufoco.
Ele: “Tudo bem. Eu sou da Alfazema. Lá tem uma proibição, tá
sabendo?” Ela: “Entendo, foi bom enquanto durou. Gostei demais de você. Nunca
entrei em conversinha de ônibus”.
A menina era uma gracinha. Bonita, sim, mas muito mais do que isso.
Os beijinhos, o corpo dela grudadinho no dele... até acreditava que ela nunca
tinha caído em conversinha de ônibus.
Não terminaram o que nem bem tinham começado. Depois de um ano com a
menina, contou para os pais. Eles se descabelaram. A mãe só parou de reclamar quando
ele ameaçou se mudar para um quarto. A namorada, ele não deixaria.
O jantar. A mãe caprichou. Isca de fígado, batatas e até pudim de
leite de sobremesa. O pai, antes de chegar em casa, tomava uma cerveja (e só
uma) no boteco do Tuiuti, na entrada da comunidade.
– Ouvi que já está tudo normalizado. Houve a troca de governo. O Código de Posturas será distribuído até sexta-feira. Nosso
prefeito é o Morbidez. Era subgerente no Morro Soturno. O Tuiuti me disse que,
além da experiência em gestão, é figura de bom trato. Não é de confronto com a
polícia e mantém boas relações com a turma da lei.
A mãe, cabreira:
– E nossa vida, como vai ficar?
O filho, bem informado:
– Mãe, quem contrariar o cara vai morrer. Ele é como os outros.
Vigia todo mundo, mas não se mete na vida de ninguém. É crente. Tem a mulher
dele, não corre atrás da mulher dos outros. Os centros de umbanda é que deverão
sair da favela em três dias.
O pai, sossegado:
– Não é com a gente. Parece que as coisas vão melhorar.
Conheceu a mulher, ambos com 20 anos. Ele ainda morava com a
mãe numa casinha de vila pequena. A mãe morreu, ele vendeu a casa e comprou o
terreno em que construiu o lugar onde vive até hoje. Uma casa ampla. Sentia
orgulho da casa que construiu e do lar que formou.
Cinco anos depois de casado, veio o filho. A mulher sofreu muito na gravidez e quase morreu no parto. Resolveram parar naquele filho. Decisão acertada. O filho era ótimo. Nunca
gostou de estudar, mas era trabalhador. Sempre foram bons amigos.
A casa, hoje, não valia muita coisa. Uma cidade mambembe cresceu ao
lado dela. Traficantes vieram. Uns piores, outros melhores. A família
adaptou-se. Seguia as regras
A mulher tinha duas irmãs e a mãe. Ele, ninguém. Só os dois.
O filho logo casaria. Dois anos de namoro. Ficaria bem. Amava a
esposa. A esposa o amava. Sempre acatava as ordens dos prefeitos da favela.
Andava olhando para o chão. Não o interessava ver rostos. Sua fraqueza: a
cerveja no boteco. Talvez fosse bom parar com esse hábito.
Era um covarde.
Sempre foi, mas não se sentia mal por isso. Sentia-se confortável sendo
medroso. O medo, até certa medida, era apaziguador.
Pensava viver até os 80 anos. Poupava, pagava aposentadoria privada,
descontava INSS. A velhice estava garantida. Precisava cuidar de chegar até lá.
Talvez por isso, desde a manhã, uma preocupação sombreou sua mente sempre
clara: Diguinho e Digão. Estavam passando no lugar errado, na hora errada.
Nunca havia considerado o acaso.
Quando acordou no dia seguinte, depois do café com a família, foi ao
banco e fez um seguro de vida em nome da mulher. O acaso não o surpreenderia.
sábado, abril 13, 2013
DIA MARAVILHOSO
- Senta aqui, Merreca. Há quanto
tempo, cara?
- Umas cervas. Boa ideia.
- Tá com boa cara, não, mano.
- Acordei pensando nas dívidas. Tomei
café aqui, matutando no que faria para levantar uns caraminguás. O Muquirana
parou do meu lado e me disse que a Lindinha tinha sido baleada e estava entre a
vida e a morte no Salgado Filho. Você sabe, Merdéu, fui amarradão nela.
Tinha consulta no posto. Aí, cacomigo, depois dou um pulo no Salgado.
- Soube, agora, pelo Tradição do Samba
que ela está bem. Operou e não corre risco de empacotar. Você esteve lá?
- Não. Fui ao médico, antes. O cara
embatucou com um carocinho na minha garganta. Me disse pra fazer uns exames,
com urgência. Acho que fiz cara de pavor, porque ele começou a “Seu Barbosa,
não é preciso se apavorar. Não sei se esse carocinho é o que estou pensando.
Pode ser, pode não ser. Se for, a medicina está muito avançada”.
- É o papo padrão. Todo médico diz
isso.
- Merdéu, você não está me ajudando.
Saí dali e liguei pra tia Isaura. Primeiro, sentei na pracinha e quase chorei.
Dívidas, Lindinha, essa doença ruim... A voz da tia Isaura me reconfortou.
- E a titia, como está?
- Feliz. É a única pessoa que vive
feliz em um asilo. Todas as semanas apareço lá. É um lugar bacana, ela tem
independência, pode sair. Pena que é longe. Duas horas de carro. Mas quando falei
sobre meu carocinho ela me contou que estava com um tumor no fígado que não tinha
mais jeito. Desliguei o telefone e fui pra lá.
- Sua tia é sua mãe.
- E que mãe. Me criou desde meus seis
anos, me deu todas as condições de vida. Passei a tarde chorando com ela. Ela
preocupada com meu carocinho. Vê se pode? Cheguei aqui, larguei o carro no
posto e encontrei você. Essas cervas estão me fazendo bem.
- Seu dia não está muito bom,
concordo.
- Da hora que acordei pra cá, tive a
confirmação de que sempre pode piorar.
- Que isso? A vida é... Acho que é seu
telefone.
- É mesmo. Peraí. “Alô, Soninha... Que
milagre é esse? Em mim? Hoje? Lá pelas oito, está bom? Passo na sua casa. Um
beijo.”
- Soninha? A Soninha?
- Você acredita nisso, Merdéu? Cerquei
essa mulher por quase um ano. Nunca me deu trela. Disse que tem pensado em mim.
Hoje foi visitar a Lindinha, lembrou do tempo que eu namorava a Lindinha, ela era
louca por mim, ficou com raiva porque preferi a Lindinha, tinha de conversar
comigo, resolver tudo, hoje.
- Cara...
- Merdéu, dívida a gente paga; a morte
não tem como evitar; uma mulher como a Soninha entrando na nossa... Dia
maravilhoso, esse.
terça-feira, abril 02, 2013
O ALUADO DA TIJUCA
Na Tijuca há um doido de 2m10 e 150kg.
Ele vaga pelas ruas, se aproxima das pessoas e com voz de pirado diz: “Pelo amorrrrrr de Deeeeeeeeeuuuus, me dá 5 reais?” Tijucano é cauteloso. Dá.
Eu estava na fila da Pacheco e o aloprado entrou na loja. Tocou o horror. As caixas: “Ai, cuidado, ele agride. Já deu um soco em uma moça”. As filas colapsaram (homenagem ao Corpo de Bombeiros). O biruta vem por aqui, sai todo mundo por ali.
“Pelo amorrrrrr de Deeeeeeeeeuuuus, me dá 5 reais?” Ninguém sabia o que fazer. Ou melhor, sabia. Abordados pelo lunático, davam os cinquinho.
De repente, ele olhou pra mim e veio em minha direção. “Pelo amorrrrrr de Deeeeeeeeeuuuus, me dá 5 reais?” Olhei-o nos olhos e falei em um tom de voz tranquilo: “Não tenho”. Lá do alto ele firmou o olhar. Olhei dentro dos olhos dele de volta. Senti-o vacilar. Percebi que ele entendeu estar diante de um serrano. Serrano não dá dinheiro. Pra ninguém.
Atrás de mim, uma senhora, encurralada contra a parede, rodava como uma barata atingida por inseticida. Exalava pavor.
O alucinado desviou os olhos de mim e foi na direção dela: “Pelo amorrrrrr de Deeeeeeeeeuuuus, me dá 10 reais?”
Aluado é o caraio.
Assinar:
Postagens (Atom)