terça-feira, abril 30, 2013

SAGAS INCOMPLETAS


Na década de 60, Frank Herbert lançou Duna, portentoso romance de ficção científica. Aqui no Brasil, saiu em 1984. Minha chefinha, Joseti Marques, me encarregou de fazer a leitura do livro em terceira revisão. Revisaria Duna de graça.
Seguiram-se a Duna, no Brasil, três outros romances (lá fora, cinco). De vez em quando, folheio estes livros que vivem aqui em casa há 40 anos (se fosse e-book, sei não). Antes de dar a saga por concluída, Herbert morreu, em 1986.
A Guerra dos Tronos, série de sete livros previstos, corre sério risco de não ter fim, exatamente pelo mesmo motivo de Duna (a diferença: Duna foi um romance muito melhor do que suas continuações, o que não é o caso de A Guerra dos Tronos que segue firme em alto nível).
George R.R. Martin está com 65 anos e leva cerca de cinco para escrever cada volume. Por enquanto, está estacionado no nº 5. A HBO que fez um resumão dos volumes e os transformou em série de muito sucesso, já pensa em mudar o critério que adotou (1 volume = 1 temporada) para ganhar mais tempo (1 volume = duas temporadas).
Cabe a nós, admiradores da obra de Martin, torcer para que estejamos vivos (nós e ele) quando o cara pôr o ponto final em sua saga.

INCOMPETÊNCIA


Evito assistir a filmes em versão dublada. Séries de TV, no entanto, corro das legendadas. Percebi isso, parece mentira, domingo passado.
O seriado Games of Thrones passa em versão original no HBO e dublada no HBO2, no mesmo horário. Sempre opto pelo HBO2.
A explicação é simples: a legendagem nos canais por assinatura é pavorosa. Já li, várias vezes, comentários de Patrícia Kogut, que assina uma boa coluna de televisão em O Globo, criticando o desleixo das operadoras com as legendas de suas séries. Se nem a ela, articulista do Império, ouvem...
Sintonize sua TV na Warner, no Sony, no AXN e, certamente, você verá filmes com legendas faltando, dessincronizadas ou ausentes. Canais como a Fox (que tem boa legendagem) oferecem alternativa de áudio e, mesmo assim, prefiro assistir às séries dubladas.
Um filme em som original é infinitamente melhor do que sua versão dublada, mas acabamos nos acostumando com e preferindo o pior. É um assunto corriqueiro, mas ilustra bem o espírito de nossa época: o do triunfo da mediocridade.

segunda-feira, abril 29, 2013

EGO



O pai, amargurado, chama o filho para uma conversa:
– Filho, fiz o que seu avô, meu pai, me disse que seria o certo. Fui honesto, solidário, jamais prejudiquei alguém. Não de caso pensado. Você viu aonde cheguei. Se é isso que quer para sua vida... Se não, siga em sentido oposto ao que escolhi.
O filho olhou em volta e viu o que já tinha visto: o pai era um perdedor. A vida virtuosa o levara à amargura, à autocomiseração, à pobreza e à frustração. Amigos do pai, orgulhosos de falcatruas perpetradas, viviam folgadamente.
O filho, junto com amigos, entendeu que assaltar um restaurante era boa forma de começar a carreira de crimes. Um roubo simples, escondidos atrás de bonés e óculos escuros. Seria o começo. Um erro e a morte veio. A mulher armada. Tiro certeiro.
O pai se surpreendeu. Não esperava que o filho o ouvisse. Há muito tempo ninguém o ouvia. Os amigos falavam. Impacientes, não o ouviam, ansiosos para que ele se calasse e prestasse atenção nas merdas que diziam.
A morte do filho o entristeceu. O orgulho, no entanto, sobrepujou a tristeza. Por que não acreditou que teria a atenção do filho? Não teria sido tão lacônico. Explicaria, pormenorizadamente, que tipo de desonesto deveria ser. Os grandes ladrões, as aves de rapina da humanidade eram dissimulados.
O ladrão que nunca vai para a cadeia aparenta honestidade. É religioso e o deus que adora é o EU. Desvia dinheiro de doentes terminais, flagelados das chuvas, vítimas da seca, merenda escolar, sem sentir nenhuma culpa.
Teria perguntado ao filho até onde ele estaria disposto a ir. Se percebesse hesitação no garoto o incentivaria a se preparar um pouco para participar de licitações fraudulentas, disseminar a intriga no ambiente de trabalho e ficar atento a todas as oportunidades de participar de esquemas desonestos.
Ah, por que não conversou mais com o filho? Quanta coisa poderia ter-lhe ensinado. Sabia toda a teoria. Vira tantos corruptos prosperarem.
O filho estava morto, a esposa o deixara há muito tempo. Estava só. Aos 50 anos, o que poderia fazer? A boa saúde lhe indicava que ainda viveria, quem sabe?, uns 30 anos. Perdera o filho e, antes de fazer o que deveria ser feito, pediria perdão ao pai morto.
No fundo do quintal da casa havia um quartinho sem uso. Construiria nele um altar para seu novo deus: EU. Seria tão fiel a ele quanto fora a outros deuses em seus primeiros 50 anos de vida. Os próximos 30 seriam mais prósperos.

domingo, abril 28, 2013

LOURAÇA NO SAMBA



Cá pra nós, quem vive sem amigos? Mas amigos nos deixam em roubadas indescritíveis. Como são amigos, a gente perdoa.
Tradição do Samba me convidou para uma de suas apresentações musicais. Era cantor dos bons. A música que ele cantava... Meu Deus!!!
Não ia dar pra encarar sozinho. Convoquei o Velho Roqueiro como acompanhante.
– Porra, Gordo, roqueiro em roda de samba. Ainda mais com o Tradição. A gente não se topa. Você ‘tá na bronca comigo por algum motivo?
– Velho, já fiz sacrifícios maiores por você. Chamei o Homem de Preto, mas a mulher dele embarreirou. É você mesmo.
Fomos. Tradição estranhou a presença do Velho, mas não deixou de ficar satisfeito.
– Hoje, você ouvirá boa música. Obras engendradas com sentimento.
– Ó!
O Velho, para não agredir, monossilabava.
O cenário da apresentação era o salão da casa do Tradição. Cadeiras em círculo em que descansariam as bundas dos vinte e poucos espectadores e, no centro, espaço para os artistas.
Sentamos. Do lado do Velho alojou-se uma louraça. Bonitona. Uns cinquenta anos. Uma lolita diante dele.
No centro, logo a nossa frente, o pandeirista se preparava. Retirou seu instrumento de um estojo de couro trabalhado e o acariciou com ternura. Parecia que apalpava as coxas de Juliana Paes. Os dedos tamborilavam a pele do pandeiro. Fez umas presepadas, pegou um copo de cerveja e lançou um sorriso torto para seu colega de cavaquinho. O único sorriso que vi. O grupo de samba do Tradição era seriíssimo.
Violões, cavaquinho, bandolim, pandeiro, tamborim, cuíca. Faltava o cantor.
Tradição chegou e dirigiu-se ao centro da roda.
No meu ouvido, o Velho murmurou:
– O sambeiro gosta de entrada triunfal.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! – o do pandeiro não admitia conversa.
Percebi que a turma se levava a sério. Previ aporrinhações.
– Gordo, vamunessa, vou dar um pau nesse babaca.
Tradição começou a cantar: “Bate outra vez, a esperança do meu coração...”
– Gordo, é sério, você vai ficar sozinho.
Do lado do Velho, a louraça sussurrou no ouvido do ancião.
– Não vá não. Mais pro final, melhora.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!
O Velho quando se emputece fecha o tempo. Normalmente, entra na porrada. Cuidar das escoriações acaba sobrando pra mim.
– Tá legal, Velho, vambora, depois me explico com o Tradição.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
– Gordo, vamos ficar, surgiu uma situação.
Desta vez a música parou. Tradição nos deu um esporro. Falta de respeito com a música de raiz.
Desculpei-me com a plateia, o conjunto, peguei o Velho pelo braço e levei-o para fora.
– Que situação?
– Vou ver se pego a loura.
– Velho, nas duas últimas trepadas você quase morreu.
– Exagerei no azulzinho.
– Você vai morrer.
– Seria uma morte gloriosa.
Voltei para a sala, desculpei-me, novamente, e prometi silêncio.
O Velho, na orelha da loura:
– Vamos sair daqui? Tomar um chopinho e quem sabe o que mais.
Loura sacana. Piscou pro Velho e arrematou:
– Não sou assassina. Na cama, eu mataria você.
O Velho levantou-se, interrompeu o suingue de Tradição e saiu. Fui atrás dele.
- E a situação?
- Esqueça. Vou dar uma passada na Isaura. Se morrer, hoje, não me será penoso.

sexta-feira, abril 26, 2013

RATÃO


– Cardoso, você parece que come merda. Por que você sentou no lugar do Ratão?
– Sabia lá que era lugar do Ratão. Cheguei da casa da mãe, vi o movimento na quadra, lembrei do jogo do Dia dos Pais e resolvi dar uma olhada. Estava cheião, vi o lugar vazio no meio da arquibancada, fui pra lá e sentei.
– Cara, não chama a arena de quadra. O Ratão já mandou matar por causa disso.
– Arena pra mim é aquela porra de romano, grego, turco, sei lá.
– Você sentou do lado da Madá, mulher do Ratão. O lugar do lado dela é dele. Você não sabe disso?
– Sabia não. Se soubesse, cê acha que ia sentar lá. Mas fiquei longe dela. Tinha o maior espação. Não encoxei a dama, de jeito nenhum.
– Se encoxasse tava morto.
– Sei não, ela me deu umas olhadas. E, ó, ela não falou que não podia sentar do lado dela. Ninguém falou.
– Todo mundo sabe que não pode. O Ratão, quando mandou construir a arena na comunidade, avisou que aqueles dois lugares jamais poderiam ser ocupados.
– Foi a primeira vez que fui na quadra.
– Arena, caraio. Eles não querem saber disso. Se manda, ouvi um zunzunzum que vão te dar uma lição.
– Porrada?
– Matar, pra dar exemplo. A Madá ficou muito chateada.
– Do outro lado dela tinha uma mina sentada.
– O lado direito dela pode ser ocupado. O esquerdo é do Ratão.
– Vou morrer por causa disso? E se eu falar com o Ratão?
– O Ratão tá preso há três anos. Pegou um gancho de 20. Você é desligado, mesmo.
– Vou ficar na casa da minha mãe.
– O Ratão vai sair no Natal pra visitar a família. Não vai voltar, claro. Levo um papo com ele.
– Valeu.
– Agora, cai fora. Não vai nem em casa. O pessoal tá querendo mostrar trabalho. No indulto de Natal saem mais uns quatro da elite. Quem tá aqui fora precisa deixar claro pro Ratão que tem valor. Ah, se eu quebrar essa pra você, daqui pra frente procure conhecer melhor as leis da comunidade. As lá de fora ninguém respeita. Já as daqui...

POR ONDE ANDA O GUARDA-CABAÇOS?


Lá pelo final da década de 60, havia um personagem que gozava (aliás, pouco gozava) da antipatia dos jovens heterossexuais: o guarda-cabaço. O guarda sempre estava ao lado da jovenzinha mais cobiçada, não a deixava por nada, acompanhava-a por todos os cantos, principalmente na escola.
Há 50 anos este era outro mundo. Um mundo em que cabaços tinham alto valor. Mundo machista, sim, mas, em muitos aspectos, um lugar mais seguro para se viver. O mundo em que perambulava, patético, o guarda-cabaço.
O guarda-cabaço, na maioria das vezes, não era gay (não era fácil ser gay na década de 60). Era, sim, sempre, muito solícito. A dona do cabaço que guardava tinha dele toda a atenção. Copiava a matéria para a portadora do hímen a necessitar de proteção, explicava os pontos das aulas não entendidos por sua protegida e levava sempre na pasta um belisquete apreciado pela queridinha.
O que ganhavam os guarda-cabaços? A companhia das tirânicas deusinhas, certamente. Pouquíssimos papavam a protegida, que quase sempre era inaugurada por um boçal boa pinta e sem noção. Mas mesmo pros boçais bonitões a vida não era fácil. Ali pelos 15, 16 anos quase toda jovenzinha mantinha sua tampinha no lugar. Não é como hoje.
Mais tarde passei a gostar tanto da companhia feminina que poderia, facilmente, ser confundido com um guarda-cabaço. Tive algumas amigas com quem nunca me envolvi sexualmente, andava com elas para cima e para baixo, mas sem me preocupar com suas vidas afetivas. Mulheres são mais ricas, intelectualmente, do que homens. No tempo de colégio, no entanto, não era guarda nem pegador. Observava, apenas.
Estudava no Brigadeiro Schorcht, na Taquara, e via sempre a chegada de um notável guarda-cabaço e sua protegida. O amigo de xadrez era apaixonado pela menina, mas o vigilante zagueiro lhe dava poucas oportunidades de aproximação. Do grêmio onde jogávamos, via o guarda chegando com a donzela. As amiguinhas se aproximavam e ele ficava por ali, borboleta a voltear a flor. Ela saía e ele acompanhava. Na cantina, ela sentava-se à mesa enquanto o pateta buscava o lanchinho da princesinha. Se um pegador se aproximava, o empata-foda se apressava e antes de o devorador desferir qualquer engodo lá estava ele, beija-flor a bicar florezinhas, para atrapalhar. Dentro da sala de aula, sentava-se na carteira logo atrás do objeto de sua veneração. Dali vigiava os movimentos dos papões. Os guardas têm, todos, comportamento semelhante. O guarda do Brigadeiro foi derrotado. Meu amigo, persistente, pintosão e rico perdeu a paciência, atacou a menininha e deixou o guarda desempregado.
Guardadores de cabaço não existem mais. São personagens de outro mundo, outro tempo. Hoje não há mais cabaços para guardar. As que ainda os preservam sentem-se envergonhadas por isso.
Eu achava que sentia aversão pelos guarda-cabaços. Não era assim. Talvez tivesse inveja daquelas figuras que faziam tudo pelo objeto de adoração. Ganhavam da lindinha, como prêmio, um sorriso, um gesto carinhoso e de todos os outros o desprezo. Viviam sem se preocupar com a maioria, escravos apenas de seus sentimentos. Invejava-os porque sempre dei muita importância à opinião alheia, como fazem muito bem os medíocres.

quarta-feira, abril 17, 2013

DEUS ME CHAMOU




Assisti no Agora é Tarde, apresentado por Danilo Gentili, na Band, à entrevista de Alexandre Canhoni, ex-paquito, que se converteu na década de 90. Dito por ele: “Deus me chamou para trabalhar com crianças no país de pior IDH do mundo. Fui e fiquei por lá.”
Canhoni diz que vem ao Brasil somente para divulgar o trabalho e cuidar da saúde. O resto do tempo, junto com a esposa, cuida de centenas de crianças, cinco delas adotadas por ele e a mulher.
O Níger é 99% islâmico e hostil aos cristãos. “Temos problemas, mas somos respeitados”, ele disse a Gentili.


Muito raramente ouço relatos críveis de pessoas que foram chamadas por Deus para cumprir algum mandato. O comum é alguém fazer o que quer e, por julgar seu desejo um tanto mundano, afirmar com olhos lacrimejantes e voz trêmula que cumpre a vontade de Deus.
Exemplifico. Um pastor faz excelente trabalho em determinado lugar, toca projetos que demandaram sacrifício de sua igreja (projetos justificados pelo reverendo como “da vontade de Deus”) e ganha, vá lá, míseros R$ 5 mil. Surge o convite de uma igreja maior. Apartamento, automóvel, plano de saúde, vale refeição... O pastor se manda e diz que vai atender o chamado do Senhor. Não me incomoda a saída do pastor, me irrita o discurso hipócrita. O pastor deveria agir como homem e dizer: “Saio porque lá ganharei mais e terei melhores condições de vida.”
Também me causa engulhos a conversinha: “Não ‘trabalho’ em instituição religiosa. Para mim é ministério. Deus me chamou. Várias empresas me querem e me pagariam dez vezes mais o que ganho aqui, mas sinto que Deus me quer em sua obra.”
Lorota. Lorota. Lorota.


Pode ser que, amanhã ou depois, venha saber da falta de sinceridade de Alexandre Canhoni. Acho difícil. Viver no Níger é duríssimo. Deserto do Saara, sertão do Nordeste muitíssimo piorado. Absoluta falta de recursos. O cara tem de acreditar que foi enviado para lá por Deus. Mesmo que Deus não tenha nada com a história e tudo não passe de delírio dele.

segunda-feira, abril 15, 2013

VAI TUDO BEM



Comunidade tensa, irrequieta, sobressaltada. Madrugada de tiroteio. Pai e mãe deram uma olhada do lado de fora. Aparece o sol, a calma volta. A mãe prepara o café. O filho volta da padaria. Chegam pão, manteiga e informações.
– Tem uns 20 mortos no campinho. Muito policial por lá.
A mãe quer saber:
– Algum conhecido?
O pai interrompe:
– Quem entrou na comunidade: polícia ou invasores?
O filho, seguro:
– O pessoal do Sufoco. Mãe, o Diguinho e o Digão, do Beco Marcelo Freixo, tombaram.
A mãe, consternada:
– Não falei pra você não andar com eles. Mãe não erra.
O filho contesta:
– Deram azar, mãe. O Digão estava esperando o Diguinho aí na entrada da comunidade. Todo dia ele espera o irmão voltar do curso. Os caras cruzaram com eles e não quiseram saber.
O pai, pragmático:
– O que será que nos espera? Cada vez que muda o comando há novas regras para obedecer. Qual a cor que eles prezam? Vamos guardar as roupas amarelas, mas precisamos saber quais as cores que podemos usar.
A mãe, cautelosa:
– Hoje, é dia de vestir roupa branca. Até o almoço chega o comunicado com as novas posturas da comunidade.
À mesa, a família toma o café. A mãe se orgulha daquele ritual de família. Pela manhã e à noite, a família se reúne em volta da mesa. Sábados e domingos, não. Há anos cumprem essa rotina. O filho é o primeiro a acordar, se apronta, vai buscar o pão, toma o café da manhã com os pais e sai para o trabalho. A mãe lamenta o filho ter abandonado os estudos. Concluiu o ensino médio e não quis saber de faculdade. Em compensação, fez vários cursos, arranha no Inglês e ganha um salário razoável como técnico em eletrônica numa empresa sólida do Centro.
O marido é pedreiro. Dos melhores. Responsável, confiável, não lhe falta serviço.
Ela é dona de casa. Mantém a casa de dois quartos um brinco. É obsessiva com limpeza. Jamais imaginou que moraria em uma favela, mas quando chegou o lugar era umas 100 vezes menor. O marido pedreiro dispôs de bom espaço para construir a casa. Tinha fundação para subir mais dois andares. Quando o filho casasse, se quisesse, e a mulher aprovasse, o pai faria um andar para ele.
Em 25 anos a favela tornou-se uma pústula. Ferida aberta, malcheirosa. A parte mais baixa, onde morava, bem melhor do que o interior, morro acima. Isso ela sabia de ouvir dizer. Nunca se interessou em se atirar nas entranhas da comunidade. Não tinha muitas amigas. Conversava com duas, três vizinhas. Papo trivial. Saía para ir ao médico, visitar a mãe, pegar uma matinê nos cinemas do shopping do bairro. A família chegou a ter um carro. Desistiram de automóvel quando um vizinho foi obrigado a levar um ferido de guerra ao hospital. O ferido morreu dentro do veículo e, antes de conseguir explicar o que aconteceu, o vizinho apanhou muito dos homens da lei.
O pai quebrou o silêncio à mesa:
– É certo que o Sufoco venceu a batalha?
O filho, didático:
– O Armando, da padaria, me disse, na encolha, que na pracinha só tem defunto daqui. O pessoal se mandou. Vão se organizar para tentar retomar, mas isso demora.
O pai, intrigado:
– O Armando sabe das coisas, né?
O filho, surpreso com a observação do pai:
– E sabe mesmo. É comerciante, precisa se manter informado. Ele me disse que demora pros caras se organizarem porque eles não têm aliados na região. Todas as comunidades em volta estão com o mesmo pessoal do Sufoco.
A mãe, precavida:
– Importante é manter a discrição. Vamos aguardar as instruções dos novos governantes e fazer o que sempre fizemos: obedecer.
O filho, em um rasgo de entusiasmo:
– Vou poder trazer a namorada pra vocês conhecerem. De repente, dependendo de como as coisas andarem, trago ela aqui pra almoçar no domingo. Os caras não deixavam namorar ninguém de facção rival.
A mãe, assustada:
– Filho, calma. Vamos esperar um pouquinho. O Armando não sabe de tudo.
A mãe estava certa, o filho sabia. Conhecera a namorada no ônibus. Viu e se apaixonou. Trocou umas palavras com ela. Sentiu que agradou. Três dias depois a encontrou novamente. Não perdeu tempo: levantou nome, telefone, endereço. Foram ao cinema, comeram uma pizza, trocaram beijinhos comportados. Fez uma graça, levou-a de táxi para casa. Ela abriu o jogo e disse que o endereço que passara para ele era de uma prima. Na verdade, morava no Sufoco. Ele: “Tudo bem. Eu sou da Alfazema. Lá tem uma proibição, tá sabendo?” Ela: “Entendo, foi bom enquanto durou. Gostei demais de você. Nunca entrei em conversinha de ônibus”.
A menina era uma gracinha. Bonita, sim, mas muito mais do que isso. Os beijinhos, o corpo dela grudadinho no dele... até acreditava que ela nunca tinha caído em conversinha de ônibus.
Não terminaram o que nem bem tinham começado. Depois de um ano com a menina, contou para os pais. Eles se descabelaram. A mãe só parou de reclamar quando ele ameaçou se mudar para um quarto. A namorada, ele não deixaria.
O jantar. A mãe caprichou. Isca de fígado, batatas e até pudim de leite de sobremesa. O pai, antes de chegar em casa, tomava uma cerveja (e só uma) no boteco do Tuiuti, na entrada da comunidade.
– Ouvi que já está tudo normalizado. Houve a troca de governo. O Código de Posturas será distribuído até sexta-feira. Nosso prefeito é o Morbidez. Era subgerente no Morro Soturno. O Tuiuti me disse que, além da experiência em gestão, é figura de bom trato. Não é de confronto com a polícia e mantém boas relações com a turma da lei.
A mãe, cabreira:
– E nossa vida, como vai ficar?
O filho, bem informado:
– Mãe, quem contrariar o cara vai morrer. Ele é como os outros. Vigia todo mundo, mas não se mete na vida de ninguém. É crente. Tem a mulher dele, não corre atrás da mulher dos outros. Os centros de umbanda é que deverão sair da favela em três dias.
O pai, sossegado:
– Não é com a gente. Parece que as coisas vão melhorar.
Conheceu a mulher, ambos com 20 anos. Ele ainda morava com a mãe numa casinha de vila pequena. A mãe morreu, ele vendeu a casa e comprou o terreno em que construiu o lugar onde vive até hoje. Uma casa ampla. Sentia orgulho da casa que construiu e do lar que formou.
Cinco anos depois de casado, veio o filho. A mulher sofreu muito na gravidez e quase morreu no parto. Resolveram parar naquele filho. Decisão acertada. O filho era ótimo. Nunca gostou de estudar, mas era trabalhador. Sempre foram bons amigos.
A casa, hoje, não valia muita coisa. Uma cidade mambembe cresceu ao lado dela. Traficantes vieram. Uns piores, outros melhores. A família adaptou-se. Seguia as regras
A mulher tinha duas irmãs e a mãe. Ele, ninguém. Só os dois.
O filho logo casaria. Dois anos de namoro. Ficaria bem. Amava a esposa. A esposa o amava. Sempre acatava as ordens dos prefeitos da favela. Andava olhando para o chão. Não o interessava ver rostos. Sua fraqueza: a cerveja no boteco. Talvez fosse bom parar com esse hábito.
Era um covarde. Sempre foi, mas não se sentia mal por isso. Sentia-se confortável sendo medroso. O medo, até certa medida, era apaziguador.
Pensava viver até os 80 anos. Poupava, pagava aposentadoria privada, descontava INSS. A velhice estava garantida. Precisava cuidar de chegar até lá. Talvez por isso, desde a manhã, uma preocupação sombreou sua mente sempre clara: Diguinho e Digão. Estavam passando no lugar errado, na hora errada. Nunca havia considerado o acaso.
Quando acordou no dia seguinte, depois do café com a família, foi ao banco e fez um seguro de vida em nome da mulher. O acaso não o surpreenderia.

sábado, abril 13, 2013

DIA MARAVILHOSO



- Senta aqui, Merreca. Há quanto tempo, cara?
- Umas cervas. Boa ideia.
- Tá com boa cara, não, mano.
- Acordei pensando nas dívidas. Tomei café aqui, matutando no que faria para levantar uns caraminguás. O Muquirana parou do meu lado e me disse que a Lindinha tinha sido baleada e estava entre a vida e a morte no Salgado Filho. Você sabe, Merdéu, fui amarradão nela. Tinha consulta no posto. Aí, cacomigo, depois dou um pulo no Salgado.
- Soube, agora, pelo Tradição do Samba que ela está bem. Operou e não corre risco de empacotar. Você esteve lá?
- Não. Fui ao médico, antes. O cara embatucou com um carocinho na minha garganta. Me disse pra fazer uns exames, com urgência. Acho que fiz cara de pavor, porque ele começou a “Seu Barbosa, não é preciso se apavorar. Não sei se esse carocinho é o que estou pensando. Pode ser, pode não ser. Se for, a medicina está muito avançada”.
- É o papo padrão. Todo médico diz isso.
- Merdéu, você não está me ajudando. Saí dali e liguei pra tia Isaura. Primeiro, sentei na pracinha e quase chorei. Dívidas, Lindinha, essa doença ruim... A voz da tia Isaura me reconfortou.
- E a titia, como está?
- Feliz. É a única pessoa que vive feliz em um asilo. Todas as semanas apareço lá. É um lugar bacana, ela tem independência, pode sair. Pena que é longe. Duas horas de carro. Mas quando falei sobre meu carocinho ela me contou que estava com um tumor no fígado que não tinha mais jeito. Desliguei o telefone e fui pra lá.
- Sua tia é sua mãe.
- E que mãe. Me criou desde meus seis anos, me deu todas as condições de vida. Passei a tarde chorando com ela. Ela preocupada com meu carocinho. Vê se pode? Cheguei aqui, larguei o carro no posto e encontrei você. Essas cervas estão me fazendo bem.
- Seu dia não está muito bom, concordo.
- Da hora que acordei pra cá, tive a confirmação de que sempre pode piorar.
- Que isso? A vida é... Acho que é seu telefone.
- É mesmo. Peraí. “Alô, Soninha... Que milagre é esse? Em mim? Hoje? Lá pelas oito, está bom? Passo na sua casa. Um beijo.”
- Soninha? A Soninha?
- Você acredita nisso, Merdéu? Cerquei essa mulher por quase um ano. Nunca me deu trela. Disse que tem pensado em mim. Hoje foi visitar a Lindinha, lembrou do tempo que eu namorava a Lindinha, ela era louca por mim, ficou com raiva porque preferi a Lindinha, tinha de conversar comigo, resolver tudo, hoje.
- Cara...
- Merdéu, dívida a gente paga; a morte não tem como evitar; uma mulher como a Soninha entrando na nossa... Dia maravilhoso, esse.

terça-feira, abril 02, 2013

O ALUADO DA TIJUCA


Na Tijuca há um doido de 2m10 e 150kg.
Ele vaga pelas ruas, se aproxima das pessoas e com voz de pirado diz: “Pelo amorrrrrr de Deeeeeeeeeuuuus, me dá 5 reais?” Tijucano é cauteloso. Dá.
Eu estava na fila da Pacheco e o aloprado entrou na loja. Tocou o horror. As caixas: “Ai, cuidado, ele agride. Já deu um soco em uma moça”. As filas colapsaram (homenagem ao Corpo de Bombeiros). O biruta vem por aqui, sai todo mundo por ali.
“Pelo amorrrrrr de Deeeeeeeeeuuuus, me dá 5 reais?” Ninguém sabia o que fazer. Ou melhor, sabia. Abordados pelo lunático, davam os cinquinho.
De repente, ele olhou pra mim e veio em minha direção. “Pelo amorrrrrr de Deeeeeeeeeuuuus, me dá 5 reais?” Olhei-o nos olhos e falei em um tom de voz tranquilo: “Não tenho”. Lá do alto ele firmou o olhar. Olhei dentro dos olhos dele de volta. Senti-o vacilar. Percebi que ele entendeu estar diante de um serrano. Serrano não dá dinheiro. Pra ninguém.
Atrás de mim, uma senhora, encurralada contra a parede, rodava como uma barata atingida por inseticida. Exalava pavor.
O alucinado desviou os olhos de mim e foi na direção dela: “Pelo amorrrrrr de Deeeeeeeeeuuuus, me dá 10 reais?”
Aluado é o caraio.