segunda-feira, abril 15, 2013

VAI TUDO BEM



Comunidade tensa, irrequieta, sobressaltada. Madrugada de tiroteio. Pai e mãe deram uma olhada do lado de fora. Aparece o sol, a calma volta. A mãe prepara o café. O filho volta da padaria. Chegam pão, manteiga e informações.
– Tem uns 20 mortos no campinho. Muito policial por lá.
A mãe quer saber:
– Algum conhecido?
O pai interrompe:
– Quem entrou na comunidade: polícia ou invasores?
O filho, seguro:
– O pessoal do Sufoco. Mãe, o Diguinho e o Digão, do Beco Marcelo Freixo, tombaram.
A mãe, consternada:
– Não falei pra você não andar com eles. Mãe não erra.
O filho contesta:
– Deram azar, mãe. O Digão estava esperando o Diguinho aí na entrada da comunidade. Todo dia ele espera o irmão voltar do curso. Os caras cruzaram com eles e não quiseram saber.
O pai, pragmático:
– O que será que nos espera? Cada vez que muda o comando há novas regras para obedecer. Qual a cor que eles prezam? Vamos guardar as roupas amarelas, mas precisamos saber quais as cores que podemos usar.
A mãe, cautelosa:
– Hoje, é dia de vestir roupa branca. Até o almoço chega o comunicado com as novas posturas da comunidade.
À mesa, a família toma o café. A mãe se orgulha daquele ritual de família. Pela manhã e à noite, a família se reúne em volta da mesa. Sábados e domingos, não. Há anos cumprem essa rotina. O filho é o primeiro a acordar, se apronta, vai buscar o pão, toma o café da manhã com os pais e sai para o trabalho. A mãe lamenta o filho ter abandonado os estudos. Concluiu o ensino médio e não quis saber de faculdade. Em compensação, fez vários cursos, arranha no Inglês e ganha um salário razoável como técnico em eletrônica numa empresa sólida do Centro.
O marido é pedreiro. Dos melhores. Responsável, confiável, não lhe falta serviço.
Ela é dona de casa. Mantém a casa de dois quartos um brinco. É obsessiva com limpeza. Jamais imaginou que moraria em uma favela, mas quando chegou o lugar era umas 100 vezes menor. O marido pedreiro dispôs de bom espaço para construir a casa. Tinha fundação para subir mais dois andares. Quando o filho casasse, se quisesse, e a mulher aprovasse, o pai faria um andar para ele.
Em 25 anos a favela tornou-se uma pústula. Ferida aberta, malcheirosa. A parte mais baixa, onde morava, bem melhor do que o interior, morro acima. Isso ela sabia de ouvir dizer. Nunca se interessou em se atirar nas entranhas da comunidade. Não tinha muitas amigas. Conversava com duas, três vizinhas. Papo trivial. Saía para ir ao médico, visitar a mãe, pegar uma matinê nos cinemas do shopping do bairro. A família chegou a ter um carro. Desistiram de automóvel quando um vizinho foi obrigado a levar um ferido de guerra ao hospital. O ferido morreu dentro do veículo e, antes de conseguir explicar o que aconteceu, o vizinho apanhou muito dos homens da lei.
O pai quebrou o silêncio à mesa:
– É certo que o Sufoco venceu a batalha?
O filho, didático:
– O Armando, da padaria, me disse, na encolha, que na pracinha só tem defunto daqui. O pessoal se mandou. Vão se organizar para tentar retomar, mas isso demora.
O pai, intrigado:
– O Armando sabe das coisas, né?
O filho, surpreso com a observação do pai:
– E sabe mesmo. É comerciante, precisa se manter informado. Ele me disse que demora pros caras se organizarem porque eles não têm aliados na região. Todas as comunidades em volta estão com o mesmo pessoal do Sufoco.
A mãe, precavida:
– Importante é manter a discrição. Vamos aguardar as instruções dos novos governantes e fazer o que sempre fizemos: obedecer.
O filho, em um rasgo de entusiasmo:
– Vou poder trazer a namorada pra vocês conhecerem. De repente, dependendo de como as coisas andarem, trago ela aqui pra almoçar no domingo. Os caras não deixavam namorar ninguém de facção rival.
A mãe, assustada:
– Filho, calma. Vamos esperar um pouquinho. O Armando não sabe de tudo.
A mãe estava certa, o filho sabia. Conhecera a namorada no ônibus. Viu e se apaixonou. Trocou umas palavras com ela. Sentiu que agradou. Três dias depois a encontrou novamente. Não perdeu tempo: levantou nome, telefone, endereço. Foram ao cinema, comeram uma pizza, trocaram beijinhos comportados. Fez uma graça, levou-a de táxi para casa. Ela abriu o jogo e disse que o endereço que passara para ele era de uma prima. Na verdade, morava no Sufoco. Ele: “Tudo bem. Eu sou da Alfazema. Lá tem uma proibição, tá sabendo?” Ela: “Entendo, foi bom enquanto durou. Gostei demais de você. Nunca entrei em conversinha de ônibus”.
A menina era uma gracinha. Bonita, sim, mas muito mais do que isso. Os beijinhos, o corpo dela grudadinho no dele... até acreditava que ela nunca tinha caído em conversinha de ônibus.
Não terminaram o que nem bem tinham começado. Depois de um ano com a menina, contou para os pais. Eles se descabelaram. A mãe só parou de reclamar quando ele ameaçou se mudar para um quarto. A namorada, ele não deixaria.
O jantar. A mãe caprichou. Isca de fígado, batatas e até pudim de leite de sobremesa. O pai, antes de chegar em casa, tomava uma cerveja (e só uma) no boteco do Tuiuti, na entrada da comunidade.
– Ouvi que já está tudo normalizado. Houve a troca de governo. O Código de Posturas será distribuído até sexta-feira. Nosso prefeito é o Morbidez. Era subgerente no Morro Soturno. O Tuiuti me disse que, além da experiência em gestão, é figura de bom trato. Não é de confronto com a polícia e mantém boas relações com a turma da lei.
A mãe, cabreira:
– E nossa vida, como vai ficar?
O filho, bem informado:
– Mãe, quem contrariar o cara vai morrer. Ele é como os outros. Vigia todo mundo, mas não se mete na vida de ninguém. É crente. Tem a mulher dele, não corre atrás da mulher dos outros. Os centros de umbanda é que deverão sair da favela em três dias.
O pai, sossegado:
– Não é com a gente. Parece que as coisas vão melhorar.
Conheceu a mulher, ambos com 20 anos. Ele ainda morava com a mãe numa casinha de vila pequena. A mãe morreu, ele vendeu a casa e comprou o terreno em que construiu o lugar onde vive até hoje. Uma casa ampla. Sentia orgulho da casa que construiu e do lar que formou.
Cinco anos depois de casado, veio o filho. A mulher sofreu muito na gravidez e quase morreu no parto. Resolveram parar naquele filho. Decisão acertada. O filho era ótimo. Nunca gostou de estudar, mas era trabalhador. Sempre foram bons amigos.
A casa, hoje, não valia muita coisa. Uma cidade mambembe cresceu ao lado dela. Traficantes vieram. Uns piores, outros melhores. A família adaptou-se. Seguia as regras
A mulher tinha duas irmãs e a mãe. Ele, ninguém. Só os dois.
O filho logo casaria. Dois anos de namoro. Ficaria bem. Amava a esposa. A esposa o amava. Sempre acatava as ordens dos prefeitos da favela. Andava olhando para o chão. Não o interessava ver rostos. Sua fraqueza: a cerveja no boteco. Talvez fosse bom parar com esse hábito.
Era um covarde. Sempre foi, mas não se sentia mal por isso. Sentia-se confortável sendo medroso. O medo, até certa medida, era apaziguador.
Pensava viver até os 80 anos. Poupava, pagava aposentadoria privada, descontava INSS. A velhice estava garantida. Precisava cuidar de chegar até lá. Talvez por isso, desde a manhã, uma preocupação sombreou sua mente sempre clara: Diguinho e Digão. Estavam passando no lugar errado, na hora errada. Nunca havia considerado o acaso.
Quando acordou no dia seguinte, depois do café com a família, foi ao banco e fez um seguro de vida em nome da mulher. O acaso não o surpreenderia.

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