quarta-feira, dezembro 29, 2010

LOURAÇA NO SAMBA


Cá pra nós, quem vive sem amigos? Mas amigos nos deixam em roubadas indescritíveis. Como são amigos, a gente perdoa.
Tradição do Samba me convidou para uma de suas apresentações musicais. Tradição era cantor dos bons. A música que ele cantava... Meu Deus!!!
Não ia dar pra encarar sozinho. Convoquei o Velho Roqueiro como acompanhante.
– Porra, Gordo, roqueiro em roda de samba. Ainda mais com o Tradição. A gente não se topa. Tá puto comigo por algum motivo?
– Velho, já fiz sacrifícios maiores por você. Chamei o Homem de Preto, mas a mulher dele embarreirou. É você mesmo.
Fomos. Tradição estranhou a presença do Velho, mas não deixou de ficar satisfeito.
– Hoje, você ouvirá boa música. Obras engendradas com sentimento.
– Ó!
O Velho, para não agredir, monossilabava.
O cenário da apresentação era o salão da casa do Tradição. Cadeiras em círculo em que descansariam as bundas dos vinte e poucos espectadores e, no centro, espaço para os artistas.
Sentamos. Do lado do Velho alojou-se uma louraça. Uns cinquenta anos. Uma Lolita pra ele.
No centro, logo a nossa frente, o pandeirista se preparava. Retirou seu instrumento de um estojo de couro todo trabalhado e o acariciou com ternura. Parecia que apalpava as coxas de Scarlett Johansen. Os dedos tamborilavam a pele do pandeiro. Fez umas presepadas, pegou um copo de cerveja e lançou um sorriso torto para seu colega de cavaquinho. O único sorriso que vi. O grupo de samba do Tradição era seriíssimo.
O grupo estava formado: violões, cavaquinho, bandolim, pandeiro, tamborim, cuíca. Faltava o cantor.
Tradição chegou e dirigiu-se ao centro da roda.
No meu ouvido, o Velho murmurou:
– O sambeiro gosta de entrada triunfal.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! – o do pandeiro não admitia conversa.
– Gordo, vamunessa, vou dar um pau nesse babaca.
Tradição começou a cantar: “Bate outra vez, a esperança do meu coração...”
– Gordo, você vai ficar sozinho.
Do lado do Velho, a louraça gemeu no ouvido do ancião.
– Não nos deixe sós. Nem a mim nem a seu amigo.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!
O Velho quando se emputece fecha o tempo. Normalmente, entra na porrada. Cuidar das escoriações acaba sobrando pra mim.
– Tá legal, Velho, vambora, depois me explico com o Tradição.
– Shhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
– Gordo, vou ficar, surgiu uma situação.
Desta vez a música parou. Tradição nos deu um esporro. Falta de respeito com a música de raiz.
Peguei o Velho pelo braço, levei-o para fora.
– Que situação?
– Vou comer a loura.
– Velho, nas duas últimas trepadas você quase morreu.
– Exagerei no azulzinho.
– Você vai morrer.
– Se for fodendo, foda-se.
Voltei para a sala, desculpei-me, prometi silêncio.
O Velho, na orelha da loura:
– Vamos sair daqui. Somos indivíduos tristes. Sozinhos, o que somos? Juntos seremos melhores.
Loura sacana. Piscou pro Velho e arrematou:
– Juntos somos melhores: acasalando.
O Velho levantou-se com a loura e interrompeu o suingue de Tradição:
– Não deixe de me convidar, na próxima.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Cafezinho & Cervejinha



Gordo e Tradição do Samba não se viam há algum tempo.
O Gordo ligou pra ele, perguntou se tinha contatos, precisava falar qualquer coisa sobre a invasão do Complexo. Tradição não refugou e confirmou encontro com dois policiais numa mesa de fundo de um boteco na Praça de Inhaúma.
– Eles aceitaram falar, no mocó, agora que a poeira baixou. Mas aí, Gordo, sem vacilo. A poeira baixou, mas não assentou completamente, e os leões ainda têm dentes.
– Porra, Tradiça, assim eu quase desisto. Os caras têm o que contar? E se têm, por que vão abrir?
– Vingança. Levaram uma volta e estão querendo dar o troco.
No boteco, os caras despejaram. Cafezinho e Cervejinha estavam putos. Cafezinho falou primeiro.
– Rolou muita grana. Deixaram a gente de fora de sacanagem. Disseram que a gente tava visado. Visado, como? Moro aí em Pilares. Casa confortável, mas em Pilares. Minha parada de veraneio, em Rio das Ostras, pouca gente sabe. Só os firmões. Pô, a gente tava lá quando desceu um monte. Tudo escoltado. Não rolou nem um cafezinho pra nós.
– Sr. Cafezinho, uma dúvida: primeiro entraram na Vila Cruzeiro e só depois entraram no Complexo?
Cervejinha tomou a palavra:
– Na Vila foi limpo, todo mundo tava ligado: federal, exército, imprensa. Mas vivemos em busca de oportunidades. Os caras entraram atrás da bandidagem e a ninhada teria de sair por algum canto. E saiu. Brotou gente das entranhas da terra. E era só brotar que tinha quem cobrasse pedágio. Foi nessa que jogaram a gente pro alto. Pô, a gente já armou uma pá de esquema. Eu não posso reclamar, mas tem colega em dificuldade. Tenho minha moradia aqui em Inhaúma, mas todo fim de semana, quando dá, vou pro apezão no Recreio. A mulher já tá por lá. Num vem mais pra cá, não se adapta com a poeira do subúrbio. É vizinha da patroa do Polegar. São amigas. Pô, cara, essa parada é negócio. A gente só quer viver.
– Eu li em uma revista que lá em cima não podia falar “gente”, porque o bordão do Comando é “É nóis”. Isso é verdade.
Ficou todo mundo olhando meio sem entender para o Tradição.
– O Tradiça, isso não vem ao caso... Nós, a gente, a velhice é fó. Mas, então, vocês garantem que saiu muita gente?
– Saíram os grandões. Os ratinhos foram largados. Os maiores que ficaram não eram tão graúdos como se imaginavam.
– Vocês acham que agora as coisas vão melhorar?
– Eu e Cervejinha estamos ligados na Rocinha. Tenho ido ao monte duas vezes por semana para ser destacado na invasão daquela mina de ouro. Já falei com o Cervejinha, temos de ser proativos. Lá será uma invasão com propósitos e as primícias serão nossas.