domingo, junho 23, 2013

BOLAS AO VENTO


Quando menino, corria peladinho pelas quebradas da Serra, nariz escorrendo catarro... Mergulhava nas águas barrentas do Rio Everest, nadava até a ilhota de entulhos e punha-me a pensar na vida. Imaginava a Serra governada por pessoas eleitas por toda a comunidade. Essas pessoas, obviamente, se organizariam em grupos com ideias afins. Estas ideias seriam expostas à comunidade que escolheria os portadores das melhores a fim de que estes as implantassem por um período de, vamulá, quatro anos.
Depois de eleito, o grupo trabalharia sem ser atrapalhado pelos adversários. Estes adversários, se pudessem, deveriam, inclusive, ajudar os oponentes. Sacumé, pro bem do povo, como todos gostam de dizer. Só se voltaria a falar em eleições bem pertinho da próxima.
Como criança é simples, tosca e imaginosa, em meus delírios (acho que era efeito de minhas bolas ao vento) via os grupos adversários se reunindo periodicamente para pensar no que deveria funcionar muito bem, independentemente de quem ocupasse o Barraco Branco: saúde, educação, segurança e transporte. Investimentos e providências para manter funcionando bem essas quatro áreas não seriam interrompidos.
Fui uma criança primitiva, cheia de pensamentos selvagens e tolos. Não sabia ainda da boa disposição de todos nós, seres humanos, de empurrar para o outro a responsabilidade pelos malfeitos. Vovó e eu caçávamos ratazanas no lixão e ela sempre me dizia: “Esqueleto, filho feio não tem pai”. Estava certa. Essa frase de vovó e uma outra, do Bochecha (“Farinha pouca, meu pirão primeiro”), me fizeram perder a inocência.
Daí pra frente passei a andar vestido. Nunca mais bolas ao vento.

sábado, junho 22, 2013

MEMÓRIA LIBIDINOSA

Nada mais poderoso do que a memória libidinosa.
Livros e bons filmes, passados alguns meses, esqueço.
Mas a sacanagem e a libidinagem apreendidas na remota adolescência são inesquecíveis.
Baixei pelo Dreamule o clássico de Salvatore Samperi, Peccato veniale. Vi o filme há 40 anos, num poeira onde hoje está o Sambola, na Av. Suburbana. Ver é força de expressão. Devorei-o. Naqueles bons tempos podia-se entrar no cinema às duas da tarde e sair à meia-noite, depois de ver várias sessões do mesmo filme. Assisti a Pecado venial em várias sessões e em diversos dias. Tudo por causa de Laura Antonelli.
Minha mãe era leitora de fotonovelas que, em sua maioria, vinham da Itália. História com Laura Antonelli eu não perdia. Lia a Grande Hotel, da Editora Vecchi, antes de minha santa mãezinha, babando pela Antonelli.
Quando a vi em tela grande, pedi aos poderes celestes que não permitissem que jamais a encontrasse em pessoa. Tenho certeza que sucumbiria diante dela.
O Dreamule baixou quatro versões de Pecado venial. Assisti-as. Logo na primeira cena mais quente percebi um pequeno corte. Alessandro Momo, o garoto sacana que papará a cunhada no final, lava o cabelo de Laura. A cena original mostra parte dos seios da deusa. Nesta versão, a cena está cortada.
Na segunda versão, a artística cena, dentro do cinema, em que o menino safado força a mão nas coxas da cunhada é mutilada. Não aparece a cunhadinha dando livre acesso às mãos do molequinho.
A terceira versão, com legendas em sei lá qual idioma, estava completíssima. Vi, 40 anos depois, o pivete traçar Laura Antonelli em alto estilo. Não tive esse prazer há 40 anos porque o filme teve a cena final cortada pela Ditadura Militar, da qual alguns babacas sentem saudade.
Minha memória pode não ser boa para muita coisa, mas descobri que sacanagem ela armazena muito bem.


P.S.: Quando falo que o filme continha cenas de sacanagem é força de expressão. A novela das 18h, hoje, tem muito mais libidinagem do que os filmes “pesados” de outrora.

quinta-feira, junho 20, 2013

MARUJO



No Metrô, os peitos na cara do garoto. Hormônios em erupção, o moleque tentava desviar os olhos. Impossível. Os volumosos seios o encaravam, atrevidos. Por causa da situação, pensei no Marujo. Ri dele e do garoto. Eu e Marujo trabalhávamos juntos na década de 80 do século passado. Ele era a encrenca, ligadaço, quase sempre doido. Uma história contada por ele divertia a turma.
“Gordo, estava no frescão. A mina sentou do meu lado. Tinha outros lugares, gordo. Uma gracinha. Pensei, vou chegar nela. Pra não levar toco, ataquei por baixo. Dei um toque no pé dela com o meu. Ela ficou na dela. Pisei, então, com um pouco mais de força. Ela disfarçou e olhou pro outro lado. Cara, a barraca armou imediatamente. Pisei, de novo, no pezinho dela e forcei um pouco. O olhar dela cruzou com o meu. Resolvi partir pra cima, mas saquei que ela estava com uma Bíblia no colo. Recuei. Minha mãe é da Assembleia, gordo. Tenho o maior respeito. Mas, aí, qualé?, essa mina tá me dando mole. É uma fiteira. Puritaninha vagaba. Santinha devassa. Calquei meu pé no dela. Ela movimentou o corpo todo. Gordo, gordo... ela tava excitadona. Aí, mermão, subitamente, me veio a luz. Se ela mexeu o corpo todo, cumé que o pé dela, embaixo do meu, estava paradão? Olhei pra baixo e vi meu pé se roçando na base da poltrona. Gordo, já ia enfiar minha mão nas coxas da mina”.

terça-feira, junho 18, 2013

BABAS


Um baba-ovo voltava todos os dias para casa na carona do chefe. Infalivelmente, perto do final do expediente, ele dizia (com sinceridade, porque legítimos babas creem no que dizem): “Está chegando a melhor hora de meu dia, quando entro no carro do chefe e ele sintoniza a Rádio Tupi FM. Só música linda e em boa companhia”.
Outra baba-ovo, todas as vezes que o chefe passava perto dela, dizia: “Chefe, que perfume é esse? Maravilhoso. No senhor, então, é demais. Combina perfeitamente com o senhor”. Ela só nunca disse que o cheiro natural do chefe era magnífico, talvez por receio de ele chamá-la para dançar e ela não ter coragem de negar.
Um terceiro baba-ovo aguardava o chefe no portão da empresa. Ao avistá-lo, ia em sua direção, pegava a pesada pasta que o feitor carregava e a depositava carinhosamente sobre a mesa dele. Celeremente, perguntava à razão de sua existência se havia se alimentado. O líder sempre dizia: “Que nada! Saí correndo da repartição”. O baba suspirava, revirava os olhinhos e voava para a cantina a fim de comprar a papinha de seu senhor. Nunca soubemos se os dois dividiam uma cama depois do expediente.

segunda-feira, junho 17, 2013

CHEFES


Um chefe era revolucionário. Nas manifestações contra a ditadura militar, segundo ele mesmo, atirava coquetéis molotoffees (era assim que ele falava, pensando nas balas Toffee). Do molotov, claro, o cascateiro nunca chegou perto. Nós, a patuleia, ouvíamos seus relatos dos tempos em que era um rebelde e fingíamos respeito, admiração e surpresa pela bravura de nosso comandante. Não nos recrimine, eram expressões legítimas de saudável puxassaquismo.
Outro chefe acordava de manhã e ordenava a seu intestino: “Cague!” E o intestino cagava. Enquanto obrava, a mulher e os três filhos entravam na sala do trono a fim de tratarem da agenda do dia. A música de fundo para a reunião familiar vinha da Rádio Tupi FM. Musak, claro. Tudo isso o chefe contava para nós, plateia cativa. Quando ele saía da sala, rolávamos no chão de tanto rir.
O terceiro chefe se entendia estrategista. Um maximizador do tempo. Trabalhávamos em dupla. Solitariamente, ninguém produzia. O chefe, então, ordenava: “Mesa 2: mijar”. E mijávamos. Mesmo sem vontade. Ele virava-se para outra dupla e determinava: “Mesa 3: relaxar. Passeio completo no corredor”. Imediatamente, dois barbados, lado a lado, levantavam-se e passeavam pelo longo corredor da falida Bloch Editores. Ainda bem que ele nunca pensou em nos fazer caminhar de mãos dadas.

quinta-feira, junho 13, 2013

BOM TEMPO



Religião é parada estranha, no entanto, sempre fui religioso.
Na pré-adolescência, influenciado pela umbanda, religião de meus pais, acendia velas por qualquer motivo. Se queria alguma coisa, antes de me esforçar para conseguir o que desejava, prometia a uma entidade qualquer um determinado número de pacotes de velas.
Antes de entrar na escola, todos os dias, iluminava a Igreja Perpétuo Socorro com as velinhas. O filminho na Praça S. Pena era precedido por uma passadinha na Igreja Santo Afonso. No dia em que quase incendiei a casa onde morava, resolvi parar com aquela babaquice, mas logo vieram outras.
Antes de umbandista, fui católico. Ia à missa na Igreja de São Cosme e Damião. Era uma tortura. Tem de ter saco de filó pra aturar missa. Sessão de umbanda, não. É uma delícia. Pelo menos para mim, era.
Em dias especiais meus pais me levavam ao Centro. O casarão branco de d. Belinha se destacava na Teodoro da Silva. Subíamos uma escadaria para chegar lá. Embaixo, o campo do América (hoje, o espaço é ocupado pelo Shopping Iguatemi). Nós, crianças, ficávamos em um salão na parte de cima da casa. Éramos convocados quando iniciava a gira de crianças.
As sessões eram animadas porque havia movimento intenso e as crianças incorporadas em adultos nos divertiam demais. Pense em alguém seriíssimo comportando-se como criança birrenta. Era isso que rolava.
Minha tia Janete era a criança mais bonita e alegre (Zarara, se não me falha a memória). D. Leonor, uma vovozinha simpática, a mais chata. Ela enchia a boca de doces, cuspia-os de volta na mão e os passava na boca dos incautos. A diversão era ficar longe dela e sacanear os desprevenidos.
Ver minha mãe se comportar como criança era estranho e hilariante. Quando ela recebia Tia Rosa, era uma velha; montada por Sete Caveiras, sinistra.
Num canto do terreiro, no castigo, quase sempre ficavam médiuns que estavam se desenvolvendo e faziam alguma lambança antes de aparecer na sessão (faltas, bebidas etc.). No Centro da d. Belinha, ficavam no cantinho, ajoelhados, e não podiam se levantar. Quando desobedeciam, o espírito incorporava e os jogava no chão. Impressionante. A relação dos indisciplinados era cheia de figurinhas repetidas: meus tios Zeca e Arari, Alcides e Moacir.
Lembro-me de ter visto o Alcides, um negão de 1m90 e mais de 100kg, sendo atirado de um lado pro outro, dentro do terreiro, por forças invisíveis. Naquele dia deve ter feito merda grande.
Aos vinte anos ingressei em uma igreja evangélica. Foi uma boa decisão, mas perdi muita coisa da vida, desnecessariamente. Afastei-me de amigos, família. Não responsabilizo ninguém. Culpa de minha ignorância. Isso, lamentavelmente, só sei agora.

terça-feira, junho 11, 2013

MACISTES

Meu irmão foi fazer um cateterismo. Junto com ele foi o seu Paixão: 84 anos. No consultório, a recepcionista distribuiu os crachás: acompanhante, Chumbinho; paciente, seu Paixão. O velho lobo do mar esperneou: “Peraí, menina, sou acompanhante. Eu trouxe o garoto”.
A televisão de casa pifou. A religião que sigo me impede qualquer envolvimento com técnicos de qualquer coisa, por isso... Minha abastada mana cedeu-me generosamente o aparelho de sua biblioteca. O quebrado de casa, um Philips de tubo, 29 polegadas, mais pesado do que bigorna de desenho animado, precisava ser descartado. A santa sogra encontrou alguém para ficar com a TV.
Seu Joaquim, 75 anos, esquálido, se apresentou para pegar o bloco de concreto. “O senhor trouxe algém para ajudá-lo?” “Cadê a TV?” “O senhor não vai agüentar. As escadas...”
O velho maciste abraçou a TV, desceu as escadas, jogou-a no ombro e lá foi como se carregasse algodão.