quarta-feira, fevereiro 19, 2020

MUNDO LÍQUIDO



Motoboys não têm muito tempo pra conversar. “Tio, tô sempre no corre.” Sou um velho conversador. Conservador, também.
Um amigo é dono de várias pizzarias. A primeira nasceu há alguns anos aqui no Engenho da Rainha. À noite, eu voltava do trabalho e, na frente da Lavoro, quatro, cinco motoboys estacionavam aguardando as pizzas ficarem prontas para serem levadas aos clientes.
A BBC News publicou extensa reportagem sobre as dificuldades que aplicativos têm causado a restaurantes menores. Meu ponto de vista, aqui neste texto, será o do cliente e, também, um pouco o do motoboy.
Há apenas cinco anos, se você quisesse almoçar, regularmente, em casa, precisaria sair recolhendo prospectos de propaganda, cartões e buscar informações de restaurantes que entregavam quentinhas em sua casa. Era trabalhoso. Quase sempre você era mal atendido. Os motoboys levavam sua quentinha junto com outras dez. Se a sua fosse a última a ser entregue, imagine como ela chegava.
Os motoboys eram mal pagos. Dependiam da consciência dos donos de comércio. O serviço era quase sempre deplorável.
A curva foram os apps. Para melhor ou pior, o futuro dirá. Por enquanto, clientes e motoboys têm gostado bastante.
O motoboy paulista Tavares 160, youtuber com 500 mil seguidores, já foi entrevistado até pelo Datena. Trabalha com o Ifood e o UberEats. Fatura, diariamente, cento e poucos reais. Já conseguiu em um ótimo dia chegar a 260 reais, só com o UberEats.
Você pode pensar, se for um jovem empapuçado, que é pouco dinheiro. Não é. Pelo menos para 90% da garotada.
Sou usuário pesado de apps. Compro remédios, comida e lanches dessa forma. Faço mercado por app. E, na maioria das vezes, sou muito bem servido.
O comerciante pode usar os motoboys dos apps ou contratar seu pessoal próprio. Se assim fizer, paga uma taxa menor só app. Difícil está encontrar motoboys que troquem uma remuneração variável que passa de 100 reais por uma fixa de, no máximo, 50 pratas.
Como esclareci, o lado do comerciante eu não sei, mas para nós clientes tudo vai bem. Almoço todos os dias em um delivery chamado Boca Nervosa (é sério). Cheguei a eles pelo Ifood. Um dia, junto com a quentinha, veio propaganda do restaurante. Passei a pedir comida pelo zap. Não demorou muito e rolou o primeiro vacilo: a comida não veio. O motoqueiro não tinha aparecido. Outro dia, esperei mais de duas horas. Como disse, sou chegado a um papo. Elogio e malho a comida servida com naturalidade. A mocinha do zap das quentinhas Boca Nervosa me disse que há uma semana o restaurante procura profissional para fazer entregas. Quando se trata de comida, sou pouco fiel. Engatei um romance com o ótimo Boisucesso e sou servido pela rapaziada dos apps. Até o momento, sem furo.
Restaurantes têm dificuldades de enfrentar o poderio dos apps; entregadores querem ser mais bem remunerados; e nós, clientes, desejamos ter nossas necessidades atendidas.
Nunca fui a Foz do Iguaçu. Um amigo vai sempre. Ele atravessava a fronteira de táxi e pagava cerca de 50 reais do hotel ao shopping no lado paraguaio. Há um ano, ele me disse, o Uber começou a funcionar bem por lá. Na primeira corrida, pagou 10 reais. Alguma dúvida que ele jamais embarcará, de novo, num táxi em Foz?
O mundo muda rapidamente nas pequenas coisas e nas grandes, também.
Leandro é motoboy em Fortaleza. Acompanho-o pelo Youtuber, também. Em um de seus vídeos, ele mostrava preocupação porque o Ifood ia mudar a periodicidade da remuneração: em vez de quinzenal, passaria a ser semanal. O garoto se preocupava em programar sua remuneração para pagar combustível, moradia, despesas eventuais e poupança. Em 2020, está cada vez mais difícil o trabalho formal, com carteira assinada. Circulando pelas ruas de Fortaleza, ele diz: “Não sou empreendedor, eu me viro. Estou aqui por opção, mas com o estudo que tenho não ganharia o que ganho em uma firma”.
Em nosso mundo polarizado, uma coisa sempre precisa excluir outra. É o que chamo idiotia dos tempos atuais. O jovem pode ir atrás de dinheiro para asfaltar o caminho de seus sonhos e, simultaneamente, lutar por melhores condições de trabalho. Não dá é pra choramingar paralisado.
Em um município do Rio, havia um riacho. A população pedia à Prefeitura que fizesse uma ponte sobre ele. Ponte feita, quem morava de um lado do riacho deixaria de caminhar 2km para chegar ao centro comercial da cidade. A Prefeitura enrolava. “Não temos 500 mil para construir a ponte.” A população se uniu e fez a ponte por 5 mil reais. Foi noticiado por toda a imprensa. O mundo se transforma e temos de pensar sobre o que fazer diante de situações que anteriormente não nos cabia resolver.
Quando comecei a trabalhar em 1974, no Jornal do Brasil, éramos 150 revisores de texto distribuídos por três turnos. Dez anos depois, não havia mais revisores no JB.
Hoje, muitos estudam para serem profissionais de carreiras que não existirão quando estes alunos estiverem formados.
A fluidez do mundo de hoje pode ser apavorante, mas ela está aí. Não adianta chorar no meio-fio. Aliás, ainda existe meio-fio?