quinta-feira, setembro 06, 2012

E AÍ, COMEU



 Av. Suburbana, trânsito engarrafado, o Velho Roqueiro olha pela janela do ônibus. Não se sente à vontade com pessoas, mas gosta de olhar pra elas. Gosta, principalmente, de olhar para belas meninas. Lá na frente, pela calçada, vêm três. Conversam animadamente. Falam alto. O barulho do trânsito é ensurdecedor. O Velho ouve as meninas, apesar do barulho. Ouve algumas frases, as mais gritadas.
– Se a dona Belinha souber vai te capar.
O Velho não entendia muito essas conversas. Como poderia uma menina ser capada? Elas se aproximavam e o Velho não tirava os olhos delas. A filha da dona Belinha era a que mais o atraía. Atrevida, marrenta, belíssima, vulgar. Ao passar embaixo da janela do ônibus paralisado os olhares da Bela e do Velho se cruzaram. Ela se incomodou.
– O que você ta olhando, velho? Sou gostosa, mas não pro seu bico.
O Velho raciocinava rapidamente. Muito Ramones.
– Sua mãe, como vai?
– Minha mãe é o cara...
– Você é filha da Belinha, né não? Você tá a cara dela. Te vi pequenininha.
A marrenta se desconcertou.
– Dá um beijão nela. O Angus mandou. Ela vai se lembrar. Se não, diga pra ela que fevereiro de 1998, em Angra, foi o melhor mês de minha vida.
O Velho era atrevido. Chutou.
– Isabel foi a mulher de minha vida. Você é Isabel como ela?
A garota ia responder. O ônibus andou. O Velho ainda ouviu a amiga da marrenta: “Dona Belinha com aquela cara de santa. Aí, ela comeu esse velho em Angra.”

SEM FIRULAS



Não há um jeito de imaginar como será nosso dia. Podemos planejar, pensar nos lugares em que deveremos ir, estabelecer metas de horário: “às 11h em tal lugar; meio-dia almoço; no máximo, às 3h, estou na Tijuca; médico, às 4h; pego um táxi, 6h estou dentro de casa.” Mas aí vem o acaso e...
Descia a Serra na boleia de um amigo. Ia ao Recreio dos Bandeirantes. O amigo estava indignado com a morte de uma jovem senhora de 33 anos, feita refém por um imbecil e morta por outro imbecil, este de farda. Olha o acaso.
Ativista de um movimento de defesa de direitos gays, o Cara de Gazela, o afoito motorista não conseguia conter a ira. Eu, egoísta, preocupado com as navalhadas no percurso. Se com ele dominando os próprios sentidos já eram muitas, imagine desvairado. Mas fomos bem.
No Recreio, peguei um dinheiro de trabalho e titubeei um pouco sobre o que fazer. Pago minhas contas em um banco daqui ou deixo para fazê-lo na Tijuca? A prudência me encaminhou para a agência bancária. Que louca ideia a de levar dinheiro para a famigerada Tijuca.
Pagas as contas, perguntei a um funcionário do banco onde pegar ônibus para a Tijuca. Ia ao cardiologista. “Aí na frente do banco, o 304. Vai pra Rodoviária.” Saí, abri o jornal e fiquei com um olho no padre e outro na missa.
No centro da pista da Av. das Américas, o Ligeirão. Precisava recarregar meu Bilhete Único. Nada de 304. Resolvi fazer a recarga. Depois entraria no Ligeirão, desceria no Terminal Alvorada e de lá iria para o bairro dos comedores de sardinha e arrotadores de garoupa.
Atravessei a rua, encaminhei-me à estação Benvindo Novais a tempo de ver acontecer, exatamente no lugar em que estava, uma cena que é comum na Serra, mas inusitada no lugar onde paulistas se recreiam. Por aqui a turma gosta de explodir carros.
A cena: Um motoqueiro e seu garupa abordam outro motoqueiro e tiram-lhe a moto. O garupa deveria ter algum transtorno de falta de amor (TFA) e danou-se a atirar contra o nada. O dono da motoca que seria roubada já havia se pirulitado. E o garupa atirava, atirava... (que merda de arma era aquela com balas à vontade?). Tentou fazer a moto do escafedido andar e nada. Ficou contrariado, bateu os pezinhos, bicou a moto caída no chão, voltou à moto em que estava, abraçou carinhosamente o amiguinho e gritou: “Vamos, porra!” E mais tiros lançou em direção ao nada. As balas só encontraram paredes. Ainda bem.
Não pude deixar de pensar que se estivesse onde estivera 5 minutos antes, talvez minha pouca mobilidade e grande volume me condenassem. Ou, quem sabe?, uns pipocos vindo em minha direção me dessem nova velocidade. O acaso, de novo.
Entrei na estação, liguei pro amigo da carona a fim de tranquilizá-lo. O ateliê dele é ali perto. Depois de contar a história, ouvi a aguda voz: “Veinho, não faça isso comigo. Você sabe que te amo. Tome cuidado. Beijão.” Apreciei o carinho, mas sou das antigas, gosto de ser amado por mulheres. Não é preconceito, mas sacumé.
Claro que não fui pra Tijuca. Busquei a segurança da Serra e a familiaridade de companheiros sem firulas. 

segunda-feira, setembro 03, 2012

As belas irmãs Deschanel


O dia em que fui Bat Masterson




Em visita a família amiga, lá pelas tantas, alguém mencionou a morte, aos 90 anos, de Gene Barry. Na sala, quase todos nos lembramos do personagem que o ator viveu em série que fez muito sucesso aqui no Brasil, na década de 60: Bat Masterson.
A musiquinha da série foi cantada em coro, comentamos alguns aspectos do filme e mudamos de assunto, como ocorre nos bons papos sem compromisso.
À noite, já em casa, voltei a pensar no velho herói e me lembrei de um momento traumático de minha vida: o dia em que fui Bat Masterson.
Um carnaval qualquer do começo da década de 60, meu pai levou-me à matinê do Clube da Light, no Grajaú. Estava fantasiado de Bat Masterson. A fantasia era um sucesso entre a criançada. Tinha bengala (a minha foi feita na carpintaria da Projetil), cartola, colete, gravatinha borboleta e revólveres.
Bat Masterson, o da televisão, era canhoto e usava só um revólver. Ganhava as paradas mais no charme do que com as armas. Geralmente, resolvia as pendências com algumas bengaladas.
O Masterson do Clube da Light usava dois revólveres prateados, dispensava o paletó (concessão ao verão carioca) e era avesso a conflitos físicos. A bengala, então, era cenográfica.
O Clube da Light era reduto de uma elitezinha merdéu. Na década de 50, não era permitida a entrada de negros em suas folias. Nos anos 60, meu pai era da diretoria do clube (e negro), por isso era lá que pulávamos no Carnaval.
Na portaria, a funcionária desarmava os Ivanhoés, Vigilantes Rodoviários, Zorros e, desgraçadamente, Bat Mastersons. Tive confiscados meus revólveres e bengala. Criança fica aborrecida, irritada, chateada... Eu, precoce, fiquei foi mesmo puto da vida.
“No final, é só pegar de volta, filhinho”, falou a mocinha. “Filhinho é o caraio”, acho que pensei em dizer, mas não disse.
No salão, o roda pra lá roda pra cá dos bailes carnavalescos. Era muito criança para aproveitar a única coisa boa de bailes de carnaval, o ninguém é de ninguém, mas me divertia. Criança se diverte com pouca coisa.
Fim de baile, vamos à portaria recolher as armas. A mocinha já tinha caído fora. Meu pai gostava de um papo e nunca se apressava. Muita gente fora embora. Entre eles, um puto, filho de pai antissocial, que levou minhas pistolas.
O porteiro me apresentou dois revólveres mixurucas, pretos, fininhos. Gostaria de ter reagido com mais bravura, mas chorei, chorei muito, chorei de fazer escândalo. Meu pai pegou a bengala da mão do porteiro e me confortou: “Depois compro outros revólveres iguais aos antigos pra você”.
Nunca comprou, mas me deu muitos discos e livros. Acho que ganhei com a troca. Não tenho sangue frio para ser matador.