segunda-feira, setembro 28, 2009

GENTE MORTA

Vejo gente morta.
Londres me chama, mas fica proutra hora.
Dureza, sacumé.
Como um joelho, tomo um café e sigo pra caminhada diária.
Ouço tiros todas as noites. Hoje, pareciam estar mais perto. Não me impressiono. Nem eu nem os vizinhos.
Por isso acordo cedo, caminho e vejo mortos. Salto sobre eles. Indiferente.
Plugado, ouço Clash.
Filtro os barulhos da rua.
Atenção, só para o trânsito. Não quero ser barreira para outros caminhantes.
A polícia está atrás de mim.
Nada contra este gordo que se arrasta.
A lei discutia a identidade do último cadáver por que passei.
Desço a Automóvel Clube e até onde a vista encataratada enxerga nem sinal de mortos estendidos pelo chão.
Dou duas voltas, banho e cama.
Os atiradores dormem de manhã.
O barulho não me incomoda. Já incomodou.
De vez em quando, no entanto, o silêncio é bom.
Durmo pesado, sem sonhos.

MACUMBÉLICO

Evangélicos têm pavor de espíritas.
Não sei se ainda sou evangélico, mas jamais alimentei esse sentimento.
Vim de lá, sou macumbélico.
Seres humanos valem alguma coisa, ou não valem nada, independentemente de religião, cor, sexo, nível social, faixa etária...
Circulei pela igreja católica, espiritismo e, na maior parte da vida adulta, tenho sido evangélico. Frequento uma igreja batista, não muito regularmente, com prazer.
Na infância, em ocasiões especiais, meus pais me levavam ao Centro Espírita.
Dona Belinha, uma gorda simpática, era a mãe-de-santo. A casa em que ela morava tinha dois andares. Ficava em uma escadaria ao lado do antigo campo do América. Hoje, o Shopping Iguatemi. Da Teodoro da Silva víamos a casa branca, no alto. Parecia um castelo.
As crianças não participavam de toda a sessão espírita. Enquanto aguardávamos ser chamados, assistíamos televisão. Ou fingíamos assistir. A TV ficava em um nicho da parede, bem lá em cima, numa extremidade da sala. A sala era enorme. Ficávamos sentados na outra extremidade. O som, baixíssimo, não permitia que ouvíssemos nada. E, para ver, só de binóculos. Todo religioso é louco.
Descíamos para o terreiro na gira de crianças. Era engraçado vermos os adultos que nos davam esporro comportando-se como crianças traquinas e birrentas.
Minha tia Janete recebia uma criança bonita como ela e divertidíssima. Minha mãe fazia suas travessuras, também incorporada. Mas onde se juntam muitas crianças tem sempre uma que enche a paciência de todo mundo. Pentelhíssima era d. Leonor, uma respeitabilíssima sessentona que, montada, emprestava seu corpo para a criança mais desagradável daqui e dalém. A criança de d. Leonor estava sempre mastigando doces que o terreiro oferecia de montão.
Mastigava, amassava nas mãos e passava na boca dos desavisados. Boca cheia de doce e cuspe, a vontade era encher a velhinha de porrada. Mas criança do além, sei lá, ficávamos encagaçados de encarar.
As crianças dalém subiam não sei pra onde e nós, as daqui, também, para a TV quase muda. Terminada a sessão, desmoronando de sono, éramos arrastados pelos adultos para casa. Morávamos a três quarteirões do Centro, mas aquela caminhada de volta na madrugada parecia uma marcha sem fim. Tenho saudades.

quarta-feira, setembro 16, 2009

ALOFENO

- ‘Cê não entende nada de marketing. Importante é a embalagem. Uma embalagem bem transada agrega valor.
- Sanduíche natural pra vender bem tem de ser gostoso, só isso.
- Você pode vender o sanduíche embrulhado no papel laminado, mas aí seu produto é igual ao de vários concorrentes. Uma embalagem bem engendrada fará do seu um produto diferenciado.
- Mas encarece o produto. Teremos de repassar esse custo para o cliente final.
- Repassaremos e o público-alvo pagará. Acompanhe-me. Faremos a embalagem em papel reciclado verde. Escreveremos o nome do sanduíche: SANDUVITA. Informaremos na embalagem que o pão de nosso produto não contém Alofeno, porque é assado em fornos movidos a energia eólica. Para ficar bem claro, imprimiremos: “Sem Alofeno. Contém Delta 7”.
- Alofeno, Delta 7?
- Basta dizer que o Alofeno, além de agredir a camada de Ozônio, engorda. Já o Delta 7 é um eficaz inibidor de radicais flutuantes.
- ???
- Diga que esses radicais flutuantes são os maiores causadores de ataques cardíacos e tumores no cérebro. Se você perceber dúvida, informe que saiu na Veja. Ninguém lê revista, mesmo.
- Os sanduíches serão de frango e atum?
- Não é só isso. Você precisa ser proativo. Não vai estar escrito na embalagem, mas informe ao cliente que nossos frangos são criados em quintal, livres. São frangos que tiveram vida feliz. Não há perigo de terem trazido em sua carne energia ruim. Mencione que os atuns são criados em Araruama e só são abatidos depois que atingem a vida adulta. São mortos com injeção que não provoca dor, ouvindo Roberto Carlos.
- Acho que vai dar certo.
- Se fizermos isso, podemos cobrar 10 pratas o sanduba. E lembre-se, depois de feita a venda, fale ao cliente com semblante entre sério e exultante: “O Planeta Terra agradece sua opção pela vida”.

ODALISCAS TIJUCANAS

Há cenas que não esqueço.
Quase todos os dias, há uns 20 anos, passava na Videogame Center, simpática loja que funcionava em uma galeria da Praça S. Pena (depois cresceu, mudou-se para o Shopping Tijuca e eu lá não fui mais).
A VGC alugava fitas VHS, games e cds. Eram três lojas independentes em uma. Gravei centenas de fitas cassete de grupos que jamais conheceria, não fora a existência de utilidade pública da VGC. Comprei, também, alguns CDs, mas eram caríssimos.
A garotada que atendia nos balcões, meio arrogante com novos clientes e atenciosíssima com veteranos, se achava. Algumas das meninas se achavam com razão.
As meninas eram bacanas, bonitas, cobiçáveis. Os rapazes faziam força para parecerem descolados. Tijucanos, sacumé.
Um dia pus o pé dentro da loja e fiquei paralisado na porta. Do canto de meus lábios, um grosso fio de baba escorreu. A todo volume, tocava no som da loja a batida oriental de “Come out and play”, do Offspring. As meninas requebravam-se sensualmente, odaliscas tijucanas a me perturbarem o juízo.
Em dias que acho que está tudo uma merda, pego “Smash”, do Offspring, e ponho no cedepleier. Sento-me, aciono a faixa “Come out and play” e fecho os olhos.
Olhos fechados, vejo as odaliscas requebrantes, relaxo e...

terça-feira, setembro 08, 2009

POSITIVO

Positivo. Os quatro meliantes foram presos em flagrante. Alguém do prédio desconfiou e ligou pra nós. Um conseguiu evadir-se, mas já estamos mobilizando grande contingente para efetuar a captura o mais rapidamente possível.
Positivo. A quadrilha é perigosíssima. Há quase um ano assalta apartamentos aqui na Zona Sul. A metodologia é sempre a mesma. Abordam o morador em seu carro e o obrigam a levá-los para dentro do lar. Uma vez dentro da casa, roubam aparelhos eletrodomésticos, computadores, jóias, dinheiro... Sempre tratando os moradores com muita brutalidade. Neste último assalto, o que parece ser o líder do grupo, chegou a introduzir o cano da arma na boca do dono do apartamento.
Positivo. Infelizmente, há relatos de exacerbação de violência. Houve alguns estupros, sempre perpetrados contra filhas e esposas na frente de pais e maridos. O único assassinato que ocorreu deveu-se à recusa da vítima em conduzir os vagabundos à sua casa. O homem foi morto com quatro tiros.
Positivo. O casal que estava sendo roubado neste último apartamento veio à delegacia e fez o reconhecimento dos criminosos. Graças à ação dos vizinhos nada de mais grave aconteceu nem com o casal nem com suas filhas. Agora, estamos aguardando que outras vítimas se apresentem para fazer o reconhecimento.
Positivo. Os perversos ficarão detidos até o julgamento, se um bom advogado não conseguir que o aguardem em liberdade. É uma possibilidade. Depois, independentemente da pena, se, no cárcere, andarem para lá e para cá com uma Bíblia embaixo do braço; fizerem um curso qualquer: culinária, informática; e tiverem bom comportamento serão soltos em alguns meses.
Positivo. Eu recomendo aos que foram assaltados, tendo, ou não, testemunhado contra a quadrilha, a se mudarem. Se puderem vão para outra cidade. Normalmente, o facínora não é vingativo. Há muita gente nova para eles barbarizarem... mas, nunca se sabe. Vovó dizia sempre: “Seguro morreu de velho”.

segunda-feira, setembro 07, 2009

O patriota é um escroto.

Brrpppbrrpppbrrpppbrrpppbrrpppbrrppp!!!

Brrpppbrrpppbrrpppbrrpppbrrpppbrrppp!!!
– Cara, ‘cê tá louco? Não faça isso.
– O quê? Tô fazendo o quê?
– Você está esfregando seus lábios no ventre nu de sua filha e produzindo esses sons em que percebo alguma lascívia.
– Zeca, é um bebê. Minha filhinha. Ela adora.
– Cara, ‘cê pode ser acusado de estupro. Se algum brasiliense vir uma coisa dessa tu tá fu. Abuso sexual, sacumé. Pena dura. Pedofilia.
– Mas quando eu a pego no colo, minhas mãos, às vezes, esbarram na bunda dela.
– Louco! Louco! Louco! Como você ousa tocar nas partes íntimas de sua filha? Cara, você vai ser enquadrado como tarado.
– Eu dou banho nela. Troco as fraldas. Limpo a bundinha.
– Cara, procure ouvir o que você disse: “Limpo a bundinha”. Quer dizer, passa essas mãos cúpidas, acostumadas às mais depravadas libidinagens, nas inocents nádegas da criança. Você vai puxar 15 anos.
– Eu e minha mulher trabalhamos. Dividimos as tarefas do lar. Ela só aceitou casar se fizéssemos assim. Eu concordei.
– Isso pode pesar contra você. Dirão que tudo foi premeditado. Saiu-se com essa de divisão de tarefas para assediar, sem desconfiança, a inocente.
– Caraio, o que faço?
– Sua sorte é que estou te alertando. Não toque mais nessa criança. Nada de colinho. Boca na barriguinha. Cheirar os pezinhos, podofilia, nem pensar. Deixe essa criança aí, do jeito que está. Espere sua mulher chegar e acabe com esse negócio de divisão de tarefas.
– Vai dar divórcio.
– Melhor, pelo menos você fica em liberdade.

OPERÁRIO

WORKING CLASS HERO
John Lennon

As soon as your born they make you feel small,
By giving you no time instead of it all,
Till the pain is so big you feel nothing at all,

A working class hero is something to be.
A working class hero is something to be.

They hurt you at home and they hit you at school,
They hate you if you're clever and they despise a fool,
Till you're so fucking crazy you can't follow their rules,

A working class hero is something to be,
A working class hero is something to be.

When they've tortured and scared you for twenty odd years,
Then they expect you to pick a career,
When you can't really function you're so full of fear,

A working class hero is something to be,
A working class hero is something to be.

Keep you doped with religion and sex and TV,
And you think you're so clever and classless and free,
But you're still fucking peasents as far as I can see,

A working class hero is something to be,
A working class hero is something to be.

There's room at the top they are telling you still,
But first you must learn how to smile as you kill,
If you want to be like the folks on the hill,

A working class hero is something to be.
A working class hero is something to be.
If you want to be a hero well just follow me,
If you want to be a hero well just follow me.

Working class hero saiu no disco de John Lennon e a Plastic Ono Band, em 1971.
O fucking da letra causou polêmica. A EMI-Odeon entrou em acordo com Lennon e permitiu que ele cantasse que o operário estava fodido, mesmo, mas, no encarte, o palavrão foi limado e saiu o velho asterisco (f***), ícone da hipocrisia gráfica. Os mais antigos se lembram da entrevista de Leila Diniz ao Pasquim, na década de 60. Ali o asterisco teve seu momento de glória.
De passagem, vi trecho do programa “O assunto é música”, do Multishow. O tema era John Lennon e comentava-se a atitude da gravadora, na época. O tom era de desaprovação à censura. Há, então, um corte para Lennon cantando WCH. As legendas apresentam a letra para os monoglotas e quem aparece, faceiro, é o ancião asterisco. Fodido ainda choca em 2009.
Meu relacionamento com palavrões sempre foi pacífico. Falo muitos deles. E escrevo-os, também. Tive uma tia que os falava com elegância. Conheço gente que me causa repugnância ao mencionar um singelo merda.
Não chego na casa de ninguém falando palavrões. Não posso exigir que outros tenham alcançado o nível evolutivo a que cheguei. Guardo os bons palavrões para usar entre amigos ou com gente não melindrosa. Ah, que horror guardo de melindrosos!
Em textos que escrevo, uso-os quando acho necessário. E quando não acho, também.

quarta-feira, setembro 02, 2009

COISA BONITA DE SE VER - Kelly Hu

Indicação do Albatroz.

CAROCINHO

Ô Jão, você sabe que eu pegava. Nem dou nome das vadias que comi aqui no bairro. Ia sujar pra mim.
Comia na moral, Jão, no papo. Você sabe disso. Nunca paguei, nunca dei presente.
Jão, há um mês fazia isso. Trinta dias atrás.
Uma porra dum carocinho na garganta.
Nem me incomodava tanto. Ó como estou, Jão: careca, esquálido, destruído, destroçado, brocha.
Jão, quantas vezes você me viu andando lá pros lados do Nova América.
Você de carro e eu no trote.
Caraio, não consigo dar a volta no quarteirão.
Um carocinho tá me arrebentando, Jão.
Um porrão de remédios. Todo dia no hospital. Espero, espero, espero... Me confundo com os comprimidos. A cabeça vazia. Vomito, vomito... Cago, cago... Um carocinho, Jão.
Jão, há um mês pegava geral. Tô com 60 e cansei de passar meninas de 20.
Tudo no papo. Só pau. Hoje, o pau não levanta.
Um carocinho.
Jão, ainda tem três meses de tratamento. Sou um trapo depois de um mês. Daqui a três serei um resto de homem, morto.
Por causa de um carocinho.