quarta-feira, dezembro 09, 2015

O CARA E O OUTRO CARA


Comunidade tensa, irrequieta, sobressaltada. Madrugada de tiroteio.
Pai e mãe deram uma olhada do lado de fora. Sol a pino, a calma voltou. A mãe prepara o café. O filho chega da padaria. Vem com pão, manteiga e informações.
– Tem uns 10 mortos no campinho. Muitos policiais. Chegaram ainda agora.
A mãe quer saber o que houve.
– O pessoal do Sufoco invadiu. Conhecidos, vi o Diguinho e o Digão mortaços. Não deu pra ver mais, a polícia cobriu os corpos.
O pai interrompe. :
– Já saiu alguma orientação da liderança do Sufoco sobre como devemos proceder?
– Pai, o cara do sufoco é tricolor e religioso de montão. Pode roupa verde, vermelha e branca.
A mãe se preocupou:
– Filho, não temos roupa com as três cores.
– Não, mãe. Pode ser só verde, vermelha... Todo de branco, não. O cara detesta religiões afro.
– Isso é discriminação – reage a mãe, umbandista desde criancinha.
– Quem vai dizer isso pro cara, mãe?
O pai levanta da mesa do café:
– Tenho uma casa para pintar. Jeans deve estar liberado, né não? Cada vez que muda o comando há novas regras para obedecer. O que vou fazer com as camisas amarelas que o outro cara exigia que usássemos?
A mãe, saudosa:
– Eu gostava do outro cara. Era educado. Sempre me cumprimentava. "Bom dia, tia. Seu vestido é lindo". Falava sem malícia. Uma vez ele me contou que o amarelo lembrava-lhe a infância no campo. Criava canários da terra. "Me dá sensação de paz". Mas vamos ficar tranquilos, até o almoço chega o comunicado com as novas posturas da comunidade. É só a polícia sair.
À mesa, a família toma o café. A mãe se orgulha daquele ritual. Pela manhã e à noite, a família se reúne em volta da mesa. Há anos cumprem essa rotina. O filho é o primeiro a acordar, se apronta, vai buscar o pão, toma o café da manhã com os pais e sai para o trabalho. A mãe lamenta o filho ter abandonado os estudos. Concluiu o ensino médio e não quis saber de faculdade. Em compensação, fez vários cursos, arranha no Inglês e ganha um salário razoável como técnico em eletrônica numa empresa sólida do Centro.
O marido é pedreiro. Dos melhores. Responsável, confiável, não lhe falta serviço.
Ela é dona de casa. Mantém a casa de dois quartos um brinco. É obsessiva com limpeza. Jamais imaginou que moraria em uma favela, mas quando chegou o lugar era umas 100 vezes menor. O marido pedreiro dispôs de bom espaço para construir a casa. Tinha fundação para subir mais dois andares. Quando o filho casasse, se quisesse, e a mulher aprovasse, o pai faria um andar para ele.
O garoto estava namorando. Ela não conhecia a menina, ainda. Ela era, exatamente, do Sufoco. O outro cara era sistemático. Não queria a garotada daqui se misturando com a de lá. Mas, daqui a algum tempo, consolidado o domínio do Sufoco, o filho poderia trazer a namorada em casa. E visitá-la, também. Claro, isso dependeria das idiossincrasias do cara. Todo cara tem manias. Um cara proibiu celulares; outro, toda semana fazia o pessoal fechar as ruas no asfalto para protestar e queimar ônibus porque éramos cidadãos, dizia ele; o pior cara andava de turbante e possuía um harém, obrigando os pais de meninas bonitas a exilarem as filhas na casa de parentes. 
Os caras sempre têm muito dinheiro, os homens da lei, não. Os caras e os homens da lei agiam sempre da mesma forma, com ínfimas variações. Uns davam, outros recebiam e nós nos estrepávamos.
Não tinha muitas amigas. Conversava com duas, três vizinhas. Papo trivial. Saía para ir ao médico, visitar a mãe, pegar uma matinê nos cinemas do shopping do bairro. A família chegou a ter um carro. Desistiram de automóvel quando um vizinho foi obrigado a levar um ferido de guerra ao hospital. O ferido morreu dentro do veículo e, antes de conseguir explicar o que aconteceu, o vizinho apanhou muito dos homens da lei.
O pai quebrou o silêncio:
– O Sufoco venceu a batalha. Vamos tocar a vida como sempre fazemos. É só mais um cara. Um pouco mais perverso que o outro cara, talvez. Tomara que ele acerte logo com os homens da lei.
A mãe, abatida:
– Se ele não acertar, aí o inferno cairá sobre nós.


terça-feira, setembro 22, 2015

O POVO


- Geraldo e Beatriz foram a Paris?
- Fala baixo. Segredo de estado. Ir a Paris com essa crise... Parece ostentação. Bibi quis. Gegê foi, contrariado. Se alguém souber no Partido.
- Estão indo com o dinheiro deles. Trabalharam. Bibi é romântica.
- No Partido pregam que o dinheiro não deve ser usado para satisfazer aspirações egoístas.
- Você se filiou?
- Não, mas assisti a umas palestras. O Gegê deve vir candidato a deputado estadual. Ele é batalhador, estudioso, tem uma puta consciência social. Não perde um debate.
- Cara, não sei se é porque fui amarradão na Bibi, mas sempre achei o Gegê um babaca. Ele é do contra.
- Está sempre na contramão, não segue a manada.
- E se a manada estiver indo na direção certa?
- A manada é manipulada. A imprensa...
- O material de propaganda do Partido não manipula?
- ...
- Ele vai sumir dez dias com a mulher, ninguém vai perguntar por ele?
- Foi pra Araruama. Está se preparando para os embates de novembro. Nem celular levou.
- Que embates?
- Não sou do Partido, mas creio que serão realizadas várias manifestações. A pauta ainda será definida.
- Mas não entendo porque têm de esconder uma viagem romântica. O dinheiro é deles.
- Não é. É dos guerreiros. A imagem de Gegê não pode ser maculada. Quando ele chegar ao poder e usar o dinheiro do Partido, sempre para o bem do povo, ninguém poderá dizer que ele está agindo incoerentemente.
- Você admira genuinamente o Gegê.

- Admiro e respeito. Tanto que já aceitei o convite para ser assessor dele depois de eleito. Faço tudo por Gegê e pelo povo desvalido.

sexta-feira, setembro 18, 2015

MAGNATAS


- Jerôôôônimo. Amigão, tem uns dez anos que não te vejo. Me dá um abraço, safado.
- Miguelzinho, você continua esporrento. Estamos dentro de um laboratório de exames clínicos. O negão já está te olhando feio.
- Jero, como você está. A família. Está ainda em Campos? Tá trabalhando com aqueles ricaços? Seus filhos...
- Miguelzinho, calma. Você está aceleradíssimo.
- Fiquei emocionado de te encontrar. Daqui a pouco me chamam. Quero saber tudo.
- Vão demorar a nos chamar. Aqui é demorado. Estou no Rio, de volta, há um ano. Os filhos estão casados. A mulher me deixou. Saí do emprego. Quer dizer, fui mandado embora. Só consegui emprego há dois meses. As coisas estão desembaçando.
- O que deu errado no seu casamento? Você e Dinorá formavam um casal bacana. Se gostavam, todos viam. E como você perdeu seu emprego? Vinte e poucos anos trabalhando com os magnatas.
- 22. Sete aqui e 15 em Campos. Fui acusado de roubo. Ontem vi uma novela em que a empregada era acusada, injustamente, de ter roubado um anel. A reação dela foi de incredulidade. A minha, também.
- Disseram que você roubou o quê?
- Dinheiro, joias... Como era empregado de confiança, circulava por toda a casa. Várias vezes a madame, já dentro do carro, me mandava buscar alguma coisa esquecida dentro do quarto dela. O patrão também me fazia de mensageiro. Buscava encomendas e deixava dentro do escritório dele. Ele me deu uma chave da sala que ocupava na firma. Fiquei, várias madrugadas, esperando ele sair de um puteiro de luxo.
A Dinorá não segurou. Dos garotos consegui esconder, apesar de eles terem ficado desconfiados. A mulher, companheira de jornada, acreditou que eu havia roubado mesmo.
- Dê um desconto pra ela. De repente, as evidências contra você eram fortes. O que disse em sua defesa, se é que você não roubou?
- O que Dinorá queria era saber o que eu fiz com o dinheiro. “As joias, para que piranha você deu?”, ela me perguntou. Estava certa da minha culpa. Só não podia perdoar o fato de eu não ter dividido com ela.
- Você...
- Não, não roubei. Sei meu lugar ou pensava que sabia. Patrão é patrão, mas ... Por que roubaria joias? Somente eu e mais dois empregados circulávamos pela casa. A cozinheira, se fosse vista longe do fogão, quase entraria na porrada. A arrumadeira é uma senhora de quase 60 anos que os pais da madame trouxeram, criança, do interior de Minas. Ela se perde em Campos, acredita?
- Então, quem você acha que foi?
- Os príncipes. Três filhos aloprados do casal. Duas meninas e um rapazote. São viciados.
- Por que você não se defendeu?
- Eles sabem as merdas que criaram. Inúteis. Os meus, pelo menos trabalham, estudaram, têm família. Uma vez elogiei minha filha pra madame e ela me deu uma sacaneada: “Só você, Jerônimo, feliz porque sua filha vai casar com um bancário. Sonhe mais alto.” A puta com duas filhas cracudas.
- Você está trabalhando em quê?
- Motorista de um conhecido dos magnatas. Ele me procurou: “Jerônimo, você é ótimo profissional. Confio em você para conduzir minha esposa e os dois molequinhos. Quanto a você ter roubado os magnatas ou não, pouco me interessa. Em minha casa não dou moleza à criadagem. De maneira alguma você passa da cozinha. Prefiro até que faça as refeições na área externa, nos fundos.
- Pô, Jero, que humilhação!
- Nada. Meu lugar está bem definido. Sou educado com os patrões, mas não preciso ter nenhum carinho, consideração, por eles. Quando fui despedido, o que me matou foi que muitas vezes achei que havia uma parceria entre mim e o magnata. Não havia. Empregado e patrão vivem em mundos diferentes. Lição simples e eu levei mais de vinte anos para aprender.
Estão te chamando. Boa sorte no exame.


quinta-feira, setembro 17, 2015

MULHERES PODEROSAS

Paula Hawkins

Sophia Hannah

Gillian Flynn

Gillian Flynn, Paula Hawkins e Sophia Hannah são escritoras bem-sucedidas. Flynn e Hannah, mais do que Hawkins (estão há mais tempo na estrada), mas é do livro desta última que gosto mais, ressaltando, no entanto, que todas as obras mencionadas neste texto li e apreciei muito. Começo pela iniciante, muito promissora, Paula Hawkins.
Uma mulher, todos os dias, viaja de trem para o trabalho. De sua poltrona no trem, observa um casal que vive na rua em que ela viveu. Os breves momentos que o trem para no sinal são suficientes para ela criar uma mitologia do casal. Um dia, algo acontece. O que acontece é o material do ótimo “A garota no trem”, da estreante Paula Hawkins. O primeiro romance da autora, depois de 15 anos no jornalismo, foi best-seller do New York Times e vai virar filme com Emily Blunt e Rebecca Ferguson. Hawkins admira as escritoras Donna Tart e Gillian Flynn. São mesmo admiráveis.
Gillian Flynn teve dois de seus livros lançados no Brasil: “Objetos cortantes” e “Garota exemplar”. “Garota” já se transformou em filme e pode ser visto sem esforço nos canais Telecine. O filme, não sei; o livro é intrigante e angustiante.
No dia do aniversário de 5 anos de casamento de Nick e Ammy Dunne, ela desaparece. Ammy é uma boneca. Seus pais criaram um personagem, Ammy Exemplar, baseado na filha, que estrelou vários livros. Ammy era uma “celebridade”. Nick é o principal suspeito do desaparecimento e, quem sabe?, morte de Ammy. Mas nada é o que aparenta em “Garota Exemplar”. Como deve ser em um bom romance policial.
As protagonistas dos romances apresentados neste texto são, no mínimo, problemáticas. Uma é alcoólatra; outra, obsessiva; a terceira, psicótica; a quarta, egocêntrica.
As três autoras usam o recurso seguro da narração em primeira pessoa. Ao fazerem assim, nada do que você lê é, necessariamente, verdade. Gillian Flynn, em “Garota exemplar”, ainda vai mais longe e usa o recurso com engenhosidade. Aliás, as três autoras são carpinteiras eficientes.
A terceira autora, mencionada, mas não apresentada, é Sophie Hannah. Poeta, autora de livros infantis e, obviamente, escritora de romances policiais, teve a honra de ser convidada para reviver, em livro, Hercule Poirot, o detetive que, na Grã-Bretanha, rivaliza com Sherlock Holmes em popularidade.
“A vítima perfeita” nos apresenta outra mulher com sequelas. Sobrevivente de um estupro, Naomi Jenkins se encontra todas as semanas com Robert Haword, um homem casado, em um hotel barato. Quando ele falta ao compromisso, ela percebe que algo grave aconteceu. Os desdobramentos são narrados com engenhosidade.

As três autoras são, na opinião deste leitor sem pretensão a fazer crítica literária, ótimas. Quatro livros que entretêm o leitor de romances policiais e mostram muito da natureza humana. Somos gente estranha, mesmo que não gostemos de admitir.

sábado, agosto 29, 2015

A INDECÊNCIA


- Jurema, querida, como vai?
- Ótima. Vamos tomar uma cerveja. Este calor tá de matar.
- A Cátia casou?
- Marina, numa boa, não quero falar nisso. A Cátia me contrariou demais com esse casamento.
- Por quê? Eu conheço o menino. É trabalhador, estudioso, ótimo filho.
- Advogado. Está com quase 30 anos e ainda não chegou a lugar algum. E nem vai chegar. Não tem ambição. Minha filha mais bonita, 22 anos. Eu estava com dois carinhas engatilhados pra ela.
- Você deu a maior força pra Carla e não deu em nada.
- Como não. A Carla está com 29 anos. Do casamento, levou dois apartamentos, dois filhos e uma pensão de R$ 20 mil. Mora na Barra, tem carro do ano, o que você queria? A Carla é a mais velha, eu não tinha experiência. E, sinceramente, minha filha nem é tão bonita...
- Jurema, beleza não é tudo.
- O ex-marido era um idiota. Por acaso, um excelente jogador de futebol. A Carla começou a namorar com ele aos 18 anos. Garoto daqui. Feinho, burrinho, mas bom de bola.
- Você não interferiu no romance deles.
- Claro que sim. Vi o potencial dele. Estimulei-o. Ele quis desistir. Queria ser DJ. Carla quis terminar. Se encantou com um bonitinho da escola. Eu disse, deixe de ser burra, esse cara vai longe. Talentoso, sem família para sugá-lo. Nós o sugaríamos.
- Ele está meio sumido.
- Começou no Vasco, foi pro Benfica, Sevilha. Quando voltou pro Vasco ele e a menina já estavam em crise. Disse pra ela, sai fora. Você já está com a vida feita. Agora, está no futebol grego. Baladeiro, cheirador. Começou com isso em Portugal.
- A Camila ainda está casada?
- Essa é a mais esperta. Conheceu o marido por intermédio do Thiago Emmanuel, o marido da Carla. Deu uma direção na vida dele. O Diogo Ricardo jogava no Madureira. Um volante durão. Também fui eu que incentivei. Em vez de namorar esses bundões, fica com ele. Veja onde ele vai. Segura um ano. Ela me ouviu. Namorou, fez jogo duro. Ele era louco por ela. Ainda é. Passou pelo Flamengo, ficou um tempo no Grêmio. Lá, eles veneram volantes. Está até hoje no Galatasaray. É ídolo. Camila gerencia a carreira dele. São felizes. Ele é apaixonado por ela. Ela adora dinheiro. É a filha que mais se parece comigo.
- E a menorzinha, a Catarina? Já fez 15?
- Vai fazer 13. A vida dela eu quero planejar melhor. Carla e Camila se deram bem, eu interferi, orientei, ajudei, mas acabou ficando por conta do acaso. O resultado será o futuro fracasso do casamento da Cátia.
- Mas ela ama o marido.
- E ele a ama. Basta um amar e o outro cuidar da caixa registradora. Amor não faz casamento feliz, no máximo, mantém duas pessoas juntas por falta de opção. Dinheiro, sim, une. E é afrodisíaco. Casal com dinheiro está sempre com tesão, mesmo que não seja um pelo outro.
- O acaso aparece. Não há como evitar.
- Concordo, mas podemos minimizá-lo. Quero minha caçula em uma vida feliz. Vida feliz para mim é vida confortável. Boa casa, bons carros, dinheiro à disposição e filhos para garantirem uma boa pensão se o casamento desmoronar.
- Ela só tem 13 anos, Jurema.
- Está em plena tsunami hormonal. Vou me abrir com você. Somos amigas. Tenho frequentado escolinhas de futebol. Olho a garotada jogando. Estou monitorando três meninos. Bons de bola, sem famílias ávidas... Futurosos. Catarina vai fazer umas correções físicas em Miami. Camila está investindo nela. Contratou Ernesto Gonzalez, o cara que fabrica as misses na Venezuela. Ele garante que umas poucas intervenções a transformarão em uma deusa aos 16 anos.
- Jurema, isso é indecente, me desculpe.
- Indecente é viver na merda como você. Essas três cervejas, esses sanduíches que comemos, quem vai pagar?
- ...
- É isso aí. Indecente é nunca ter dinheiro para pagar as despesas no boteco da esquina.

sexta-feira, junho 19, 2015

PAREDÃO


 Dez minutos antes estava na farmácia comprando remédio para prisão de ventre. Do meu lado, uma moça bonita. Não sabia que dali a instantes estaríamos deitados lado a lado, nos olhando com emoção intensa.
Sou homem casado, seriíssimo e não poria no papel algo que me comprometesse, por isso explico.
Tenho passado um tempo na Praça Seca, enquanto intermináveis obras em meu apartamento são feitas. Domingo, 30 de maio, 18h, precisei sair da Rua Florianópolis e ir à Rua Barão, uma paralela, para comprar remédio e pão. O remédio, comprei.
A moça bonita caminhava na minha frente. A fim de evitar as concupiscências da carne, eu olhava para o outro lado da rua. Como um egípcio, andava de perfil. De repente, o céu desabou. Chuva que nada. Tiros, tiros, tiros.
Eu que por causa do peso, da idade, da hérnia de disco, das varizes (chega!) há anos não me sento no chão, atirei-me ao solo com insuspeitada velocidade. Do meu ladinho, entre mim e a parede, a moça bonita se alojou.
- Moço, fica aqui, por favor!
Fiquei, em nenhum momento iludido a imaginar saliências. Sei que 140kg distribuídos em 1m80 formam boa parede de proteção. A moça era pragmática. Ela precisava de um paredão.
Mais tarde, saberia, em casa, que se tratava de uma operação do BOPE. Eles chegaram, foram recebidos a bala e reagiram à altura. Por milagre, ninguém morreu, mas, obviamente, ali no chão, eu não sabia que sobreviveria.
- Moça, você tem ideia do que está acontecendo?
- Meu nome é Magnólia. Desculpe-me, não gosto que me chamem de moça. O senhor não sabe que a Barão é dominada por uma facção criminosa. A segunda paralela, a Dr. Bernardino, por outra e a terceira, a Capitão Machado, outra.
- Não, não sabia.
- As facções brigam entre si, a polícia vem e o tiro come solto. Acontece toda hora.
E os tiros continuavam. Muitos. Calibres diversos. Fuzil, metralhadora, bazuca, granada, sabre de luz. Só podia pensar que tinha gastado dinheiro à toa comprando remédio para prisão de ventre. Levantei a cabeça e não vi ninguém na rua.
- Você já passou por isso? O que a gente faz?
- Tio, nós estamos entre a Japurá e a Marangá. Acho que o mais seguro é voltarmos para a Japurá, quando derem um refresco. O senhor me desculpe, mas quando for a hora, vou correr. Não vai dar pra ficar esperando.
Uma ingrata. Pensei em dizer que não gosto de ser chamado de tio. Deixei pra lá. Ela estava ali malocadinha atrás de mim e nem pensava em ajudar o velho a levantar. Ela sussurrou, em meu ouvido:
- É agora, vamos.
E foi mesmo, em alta velocidade.
Eu não, me levantei com todo cuidado, calmamente. Pior que tiro é travar minha coluna, por causa da hérnia. Caminhei, dobrei a rua à esquerda e voltei a ouvir o tiroteio. Senti-me em uma cidade iraquiana sendo atacada pelos selvagens do Estado Islâmico.

Está difícil viver no Rio de Janeiro.