Comunidade tensa, irrequieta,
sobressaltada. Madrugada de tiroteio.
Pai e mãe deram uma olhada do lado de
fora. Sol a pino, a calma voltou. A mãe prepara o café. O filho chega da
padaria. Vem com pão, manteiga e informações.
– Tem uns 10 mortos no campinho.
Muitos policiais. Chegaram ainda agora.
A mãe quer saber o que houve.
– O pessoal do Sufoco invadiu.
Conhecidos, vi o Diguinho e o Digão mortaços. Não deu pra ver mais, a polícia
cobriu os corpos.
O pai interrompe. :
– Já saiu alguma orientação da
liderança do Sufoco sobre como devemos proceder?
– Pai, o cara do sufoco é
tricolor e religioso de montão. Pode roupa verde, vermelha e branca.
A mãe se preocupou:
– Filho, não temos roupa com as
três cores.
– Não, mãe. Pode ser só verde,
vermelha... Todo de branco, não. O cara detesta religiões afro.
– Isso é discriminação – reage a
mãe, umbandista desde criancinha.
– Quem vai dizer isso pro cara,
mãe?
O pai levanta da mesa do café:
– Tenho uma casa para pintar.
Jeans deve estar liberado, né não? Cada vez que muda o comando há novas regras
para obedecer. O que vou fazer com as camisas amarelas que o outro cara exigia
que usássemos?
A mãe, saudosa:
– Eu gostava do outro cara. Era
educado. Sempre me cumprimentava. "Bom dia, tia. Seu vestido é
lindo". Falava sem malícia. Uma vez ele me contou que o amarelo
lembrava-lhe a infância no campo. Criava canários da terra. "Me dá
sensação de paz". Mas vamos ficar tranquilos, até o almoço chega o
comunicado com as novas posturas da comunidade. É só a polícia sair.
À mesa, a família toma o café. A
mãe se orgulha daquele ritual. Pela manhã e à noite, a família se
reúne em volta da mesa. Há anos cumprem essa rotina. O filho é o primeiro a
acordar, se apronta, vai buscar o pão, toma o café da manhã com os pais e sai
para o trabalho. A mãe lamenta o filho ter abandonado os estudos. Concluiu o
ensino médio e não quis saber de faculdade. Em compensação, fez vários cursos,
arranha no Inglês e ganha um salário razoável como técnico em eletrônica numa
empresa sólida do Centro.
O marido é pedreiro. Dos
melhores. Responsável, confiável, não lhe falta serviço.
Ela é dona de casa. Mantém a casa
de dois quartos um brinco. É obsessiva com limpeza. Jamais imaginou que moraria
em uma favela, mas quando chegou o lugar era umas 100 vezes menor. O marido
pedreiro dispôs de bom espaço para construir a casa. Tinha fundação para subir
mais dois andares. Quando o filho casasse, se quisesse, e a mulher aprovasse, o
pai faria um andar para ele.
O garoto estava namorando. Ela não
conhecia a menina, ainda. Ela era, exatamente, do Sufoco. O outro cara era
sistemático. Não queria a garotada daqui se misturando com a de lá. Mas, daqui
a algum tempo, consolidado o domínio do Sufoco, o filho poderia trazer a
namorada em casa. E visitá-la, também. Claro, isso dependeria das
idiossincrasias do cara. Todo cara tem manias. Um cara proibiu celulares;
outro, toda semana fazia o pessoal fechar as ruas no asfalto para protestar e queimar ônibus porque éramos cidadãos, dizia ele; o pior cara
andava de turbante e possuía um harém, obrigando os pais de meninas bonitas a exilarem as filhas na casa de parentes.
Os caras sempre têm muito dinheiro, os
homens da lei, não. Os caras e os homens da lei agiam sempre da mesma forma,
com ínfimas variações. Uns davam, outros recebiam e nós nos estrepávamos.
Não tinha muitas amigas.
Conversava com duas, três vizinhas. Papo trivial. Saía para ir ao médico,
visitar a mãe, pegar uma matinê nos cinemas do shopping do bairro. A família
chegou a ter um carro. Desistiram de automóvel quando um vizinho foi obrigado a
levar um ferido de guerra ao hospital. O ferido morreu dentro do veículo e,
antes de conseguir explicar o que aconteceu, o vizinho apanhou muito dos homens
da lei.
O pai quebrou o silêncio:
– O Sufoco venceu a batalha.
Vamos tocar a vida como sempre fazemos. É só mais um cara. Um pouco mais
perverso que o outro cara, talvez. Tomara que ele acerte logo com os homens da lei.
A mãe, abatida:
– Se ele não acertar, aí o inferno cairá sobre nós.