segunda-feira, junho 06, 2016

O BOM CRIOULO


Uma tarde, no politizado Conjunto Proletário 1º de Maio, apareceu, coleira no pescoço, um cachorro preto. Não tinha mais de um ano. Bonitão, simpático, risonho, sempre bem-humorado, logo conquistou os corações de todos nós. Uma dentre as 70 portarias do grande conglomerado de apartamentos deu casa, comida e roupa lavada para o personagem que fazia morada nos corações dos empedernidos oprimidos do 1º de Maio.
De manhã, passo para a padaria e dou-lhe um pedaço de bifinho para cachorro. É o sinal para ele sair em peregrinação por todos os subconjuntos que formam o 1º de Maio. É o mundo dele. As crianças brincam com ele, as mães lhe coçam a cabeça e os homens riem com suas pandeguices.
Não se sabe por que, alguém resolveu nomear o cão. Um figura das antigas, com certeza. O cão virou Pelé.
Jurema, esperneou. Ela esperneava gritando. Quando esbravejava, então, sai de baixo.
– Esse cão não pode ser chamado de Pelé. É racismo!
Celsinho era contemporizador.
– Nada a ver. É porque ele é todo preto.
Jurema quase partiu pra cima, mas a discussão ganhou tal força que algo inédito na história do 1º de Maio aconteceu: os quatro subconjuntos que sempre resolveram suas pendências, individualmente, entenderam que aquela questão merecia uma reunião geral. Os quatro síndicos se juntaram e marcaram o encontro dos moradores interessados em discutir a questão. Só um tema seria tratado: o nome de nosso xodó.
Mais de 200 pessoas compareceram e logo começaram a pipocar as sugestões. Sugeri Xodó. Acharam pouco másculo. Celsinho mandou Feijão. Jurema, desta vez, foi pra cima. "Você é um racista. Um afrodescendente racista." Celsinho se defendeu: "Tem feijão de um monte de cor: branco, preto, mulatinho, vermelho... Você é doente."
O moderador pediu a palavra. "Vamos evitar nomes que possam ser associados a raça, política, futebol... Este cão não merece ser responsável por dissensões entre nós. Ele é um animal pacífico, sempre sorridente."
Jurema, linguaruda, não se conteve. "É o bom crioulo. Submisso, serviçal, sempre querendo agradar. Não levanta a voz, jamais. Nunca o vi protestar contra o assédio da criançada. Ele não me representa." Vaias, aplausos, gritos.
O moderador, paciente, pediu silêncio e que mais nomes fossem sugeridos. Aos borbotões, eles surgiram: Rex, Filó, Napalm, Alfredo ("Alfredo é o cacete, gritou o Alfredo")... "Tony", disse fraquinho dona Marieta. A turma fez silêncio e saiu o nome: Tony, de Tony Ramos.
O moderador proclamou: "O nome de nosso querido é Tony. Assim vamos chamá-lo".
De manhã, Tony saía para o seu bordejo diário. E entre carícias, coçadinhas e beijocas ouvia em alta voz seu nome repetido: Tony, Tony, Tony. Mas quando quem fazia carinho ou com ele brincava se abaixava e chegava perto de suas orelhas, sussurrava: "E aí, Pelé, como vai a vida".

Tony era o nome fantasia, o do coração era Pelé.

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