Há muito tempo, foi moda no FB a elaboração de
lista com verdades & mentiras. Normalmente, sete verdades e uma mentira.
Sempre sobre a vida do autor do texto. Não sei quantas verdades escreverei.
Haverá, claro, uma mentira. Não garanto revelá-la.
1) Uma vez, menino ainda, descia a íngreme
ladeira da Ferreira Pontes, no Andaraí, de velocípede. Em pé, atrás de mim, uma
amiguinha. Com uma das mãos, segurava meu ombro para se manter equilibrada, com
a outra empinava uma pipa. Não sei por que fazíamos isso. Bobeei e choquei-me
com um hidrante.
A amiguinha voou por cima de mim e encarou o
perverso hidrante com o queixo. Fiquei traumatizado, tomei umas chineladas de
minha mãe, mas a amiguinha não perdi.
2) No ginásio, tinha uma professora chamada
Clícia. Eu estava resfriado e, porcão, engolia o catarro que produzia. Tudo
isso dentro da sala de aula, sentado bem pertinho da mestra para sorver a
sabedoria que dela emanava.
Incomodada com meus maus modos, a educadora me
deu um esporro de arrasar quarteirão. A turma se solidarizou comigo, indignada
com a atitude dela, e cortou relações com ela. Na aula seguinte, a megera fazia
perguntas e ninguém respondia. Ela percebeu a jogada e, maquiavélica, fez uma
pergunta ao covarde: eu. Respondi, a turma se emputeceu comigo e o movimento de
protesto acabou. Levei 40 anos para voltar a respeitar professores.
3) Na década de 80, toda hora havia greves.
Trabalhava na Manchete. Minha jornada era de 7 às 13h, de segunda a sexta. Ótimo
horário, salário de mercado, não precisava ocupar meus fins de semana e tinha o
dia inteiro para trabalhar em outros lugares ou estudar.
Na Manchete, falta em dia de greve era demissão
na certa. O Jaquito era implacável.
Um dia cheguei e tinha piquete na porta da
empresa. Havia uma entrada “social” e outra de funcionários. A de funcionários
levava ao relógio de ponto. Na Manchete, trabalhavam diversos tipos de
profissionais. O expediente que se usava para furar a greve era dizer que ser
jornalista em dia de greve de gráficos ou gráfico quando o piquete era de
jornalistas.
Eu, evangélico da antiga, não gostava de mentir.
Mentia, mas naquele dia, sei lá... “Sou jornalista e vou entrar.” “Estamos
lutando por você, pelego feladaputa.” “Vou entrar.”
Levei cascudo, porrada nas costas, chute na
bunda. Fui chamado de traidor, vendido e o cacete a quatro. Mas entrei.
Senti-me um covarde, mas segui empregado.
4) Eu e Hernani, pré-adolescentes, tínhamos uma
paixão comum: Zoé. Ela morava no 590 (ou 490) da Conde de Bonfim. Muitas vezes
ficávamos sentados em um boteco bem em frente ao prédio, a observar porra
nenhuma.
Um dia, ousados, entramos no prédio. Logo fomos
cercados pela garotada local, os inimigos. O que estão fazendo aqui? Por que
entraram? Aonde vão? As respostas não foram satisfatórias, levamos uns safanões
e fomos imediatamente expulsos.
No dia seguinte, Osvaldo, namorado da cobiçada,
me cercou e garantiu que me encheria de porrada na saída. Seria mesmo, sem
apelação. A não ser quê...
Eu tinha um amigão. Amigo de rua. Conhecido da
família. O maior lutador de rua que conheci. Da mesma turma de Osvaldo
Jiu-Jitsu.
Recorri ao protetor. Ele, carinhosamente,
alertou o pretenso espancador: “O Mug é meu amigo. A briga dele é minha”.
Ninguém desafiava Paulo Roberto Silva. Escapei.
Não era bom ser frouxo, mas eu não gostava de
apanhar.
5) Fui uma criança encagaçada. Tinha medo de
tudo. Minha avó Dalila (ela era só minha) ficava vendo televisão comigo
madrugada adentro. Eu e ela, sozinhos, madrugada adentro. A velhinha dava
cabeçadas de sono. Meu tio chato de vez em quando acordava e enchia o saco:
“Mamãe, vem dormir”. Ela saía do sono profundo pra dizer: “Arari, vai dormir,
estou vendo o filme com meu favorito”.
No meio da madruga, me dava vontade de mijar e
cadê coragem para ir ao banheiro sozinho? Tirava a vovozinha do meio do sono
para me proteger no perigoso percurso. Dormia de mãos dadas com ela. Tudo me
assustava.
Apanhava muito de uma vizinha na Rosa e Silva
(para ser justo, de mais de uma). Tomava cascudos de um outro, a troco de nada.
Os dois estão aqui no meu FB e não se lembram de nada. É natural.
Na rua, minha vovó não podia me proteger, mas
dentro de casa era minha guardiã.
6) O melhor amigo que tive no ginásio,
enlouqueceu. Os irmãos dele se envolveram na luta armada contra o regime
militar. Sofreram muito, por convicção. Hoje, talvez estejam bem. Menos ele.
Nem sei se está vivo.
Percebi que ele não estava bem quando, aprovado
na Escola Técnica Celso Suckow, desistiu do curso e reuniu´se a nós na boate
João Alfredo, em Vila Isabel.
Já num hospício, fomos visitá-lo, eu e
Wanderley. Duros, comemos jaboticaba o dia inteiro. Deley era ótimo em subir em
árvores.
Meu último contato com Ronaldo foi em
Jacarepaguá. Ele estava internado em um manicômio da Cândido Benício e de lá
fugiu. Foi lá pra casa, alteradíssimo. Todo mundo em casa se assustou. Eu, mais
que todos. Dei um jeito de encaminhá-lo de volta ao hospício e nunca mais o
procurei. Não ser bom amigo é decepcionante, mas me faz ver que não sou grande
merda.
7) Uma vez por semana os enfermeiros do hospício
mencionado aí em cima levavam os malucos para jogar no campo do Parâmides. Eles
chegavam, interrompiam a pelada e o time deles jogava contra um formado pela
rapaziada.
Os enfermeiros sempre pediam nossa colaboração
(nossa é força de expressão, eu era costumeiramente barrado na pelada pelo
excesso de ruindade). “Por favor, deixem os doidinhos jogar. Peladinha café com
leite. É só 20 minutos de jogo. Terapia. Pelamor de Deus, não tirem a bola dos
malucos.”
Em nosso gol (Na pelada dos malucos, eu jogava.
Não desarmava ninguém nem fazia gols, era o jogador ideal para não irritar os
aloprados.), atuava o Tiquinho. Também conhecido como Botiquinho. Bebia doses
cavalares de cachaça. Nunca o vi sóbrio. Era um bêbado que levava a sério o
futebol, mas deixava os doidos marcarem gols em sua meta. Quase sempre. Um dia,
sei lá por que, encarnou Andrada. E antes da pelada começar, gritou: “Hoje, sou
Andrada”. Percebi a merda e, mais inteligente do que a maioria, cedi minha
vaga.
Os alucinados vinham com a bola, passagem aberta
pelos atletas da linha, e porravam em direção à baliza guarnecida pelo lendário
Tiquinho. E ele pegava todas. No começo, apreensivos, todos pedíamos para ele
deixar a bola entrar. Alguém tentou substituí-lo. Ele se recusou a sair. Os
doidinhos ficaram nervosos. Os enfermeiros resolveram encerrar a partida. No
mesmo momento, um louco foi lançado em profundidade, driblou o Tiquinho e
quando ia fazer o gol levou um pontapé do bêbado. Pênalti. E não é que o
feladaputa defendeu.
Não teve jeito, a porrada comeu e os malucos
nunca mais vieram ao Parâmides.
8) Tenho um amigo muito criativo. Ele é coronel
PM, já reformado. Comandou o quartel da área da Praça Saens Pena. Anos 80 do
século passado, muitos furtos aconteciam na Praça. Os gatunos deitavam e
rolavam. Um dia, o amigo reuniu seu estafe e disse: “Vamos pôr um espantalho no
meio da Praça. Temos um Opala em boas condições de lataria, mas mecanicamente
se arrasta. A gente deixa o carro na Praça com dois homens. Não dá pra sair com
ele atrás de ninguém, mas acredito que assustaremos os pilantras.”
Dito e feito. Os índices de furto caíram muito.
O sucesso foi tanto que chamou a atenção da imprensa. Bastaram duas ou três perguntas
do repórter para que ele, profissional, percebesse que o Opalão era somente um
espantalho. Reportagem na TV e entregada em O Globo levaram ao fim a Operação Opala
Espantalho. E os gatunos voltaram a se espalhar.
9) Em minha meninice, Roberto “ganhou” a garota
mais bonita da rua: a Cacau. Nós morávamos na Rosa e Silva, entre a Ferreira
Pontes e Botucatu. Cacau morava entre a Botucatu e a Caçapava.
Todos os dias jogávamos uma pelada na rua (eu
era gandula), perto da Botucatu.
Um dia Cacau apareceu para fazer um aceno
carinhoso pro Roberto. Ele não gostou. “Não pegou bem, ela aparecer na pelada.
Todo mundo olhando pra ela.” Como se normalmente não olhássemos.
Chiquinho instigou: “Tem de dar um toque nela.”
Roberto deu. Ela o mandou passear. Chegou a chorar por perder o pitéu.
Menos de um mês depois o titular absoluto no
escrete da Cacau era o Chiquinho. Ele nunca ligou de ela ir vê-lo jogar na
pelada.
10) Todos se surpreenderam quando José Luis, o
Arroz Brejeiro, trucidou em uma briga o Ronaldão. Semana sim, semana também, o
asqueroso escalava alguém que ele entendia fraco e avisava: “Depois da aula, me
espera lá fora”. A maioria das brigas nem acontecia. Na hora da porrada, ele,
condescendente, dizia: “Dessa vez vou livrar sua cara, mas na próxima...” O Zé
não esperou que ele falasse e só parou de bater quando ele disse bem alto:
“Arrego”.
A surpresa de todos com o resultado da briga foi
por causa da natureza pacífica do Zé. Ele era sacaneado por todos na escola e
sua única reação era pôr sobre o branco leitoso de sua pele um vermelhão de
camarão. Ele ficava puto por ser chamado de Brejeiro, mas jamais reagiu.
Euzinho não me surpreendi. Éramos bons amigos.
Frequentava a casa dele na Souza Aguiar, no Méier. O Zé tinha um irmão mais
velho, louco de pedra. Presenciei algumas brigas entre os dois. Eram épicas.
A porradaria começava dentro da casa, passava
por uma longa escada e quase sempre terminava no quintal. Socos, pauladas,
chutes, uma vez rolou faca... Eu ficava lá de cima, olhando. A luta sempre
terminava com o Zé engravatado, sufocando em vermelho babado, tendo de gritar
Arrego, arrego, arrego, com a voz esmagada. Estropiado, sempre depois das
lutas, ele dava uma meia-dúzia de socos na parede. Depois do dia da faca não
apareci mais lá, mas saí convicto de que brigar com Zé Luís não seria bom
negócio.
Com a carreira do Ronaldão, ele acabou.
Fim de papo.
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