quinta-feira, outubro 19, 2017

CRIANÇA RAIZ


Criança, hoje, tem boa vida.
Meus tios Zeca e Ari me contavam que uma vez, adolescentes, fumavam na rua, matando aula. Um vizinho passou por eles, chamou-lhes a atenção e pespegou-lhes tapas na cara. Na cara dos dois. Saiu dali, foi até o pai deles, meu avô, e relatou o ocorrido. Meu avô parabenizou o vizinho, chamou os dois e tapa na cara foi só o começo de uma surra que passaria para a história da família. Surra relembrada em diversas reuniões familiares, por muitos anos depois de acontecida. Meus tios relatavam a sova rindo, aparentemente sem mágoas. Meu tio Ari, o mais velho, ainda debochava: “Eu obrigava o Zequinha a fazer gazeta. Ele ia obrigado. Se não me acompanhasse, eu batia nele. Acabou apanhando do vizinho e do velho Benício”.
Meu tio Bira, o salvação, era figura divertidíssima, pelo menos para nós que vivíamos longe dele. Lutou muito. Foi taxista, mecânico, dono de caminhão de frete. Em uma época que poucos tinham casa própria, comprou três, ao longo da vida. Casas que ficaram para os filhos. Divorciado, criou os quatro filhos com a sogra. Cristã atuante, levou todos os netos a Jesus.
Tio Bira era seguro, pão-duro, canguinha. Quando precisava comprar sapatos para os quatro filhos, fazia-os pisarem em uma folha de papel, tirava o contorno dos pés e ele mesmo ia à sapataria fechar negócio.
Meu pai era mão-aberta, mas não tinha dinheiro. Na infância, eu escrevia cartas para o Papai Noel e pedia. Pedia bem. Não recebia nada. Ficava aborrecido. Internamente, xingava o velho Noel, mas logo me arrependia e atribuía a esse tipo de atitude a razão de não receber o solicitado. Duro foi quando fiquei, por uns três natais, recebendo a mesma bicicleta, repintada. Com os meus botões, pensava: “Sou mau pra dedéu, o velho não vai mesmo com minha cara”.
A boa criança daquela época era discretíssima. Andava sempre de cabeça baixa. Não se intrometia em conversa de adultos. Para ser exato, não demonstrava interesse no papo dos maiores. “O que está olhando, isso não é conversa pra você?” Toda criança de meados do século passado ouviu isso. Entre os adultos, desqualificar uma criança era chamá-la de reparadeira. Reparadeira era a criança curiosa, que olhava e via. Era uma observadora. Chegava em um ambiente e perscrutava com os olhos todos os cantos.
Criança, hoje, tem boa vida. Para o bem e para o mal.
As crianças de hoje são mais saudáveis, autônomas, sensíveis, destemidas. Também são mais mimadas, birrentas, cheias de vontade.
Na minha frente, no Supermercado, um menino de no máximo 5 anos pediu um chocolate à mãe. A mãe falou baixinho no ouvido dele que estava sem dinheiro. O moleque começou a xingá-la com alguns nomes que precisei anotar para buscar o significado depois. Xingava aos berros, chutava a mulher que, constrangidíssima, pegou o chocolate pro pimpolho. Se eu pudesse entregá-lo pro velho Benício...

O tempo passa e a maneira de lidarmos com diversas situações muda. Não vejo sentido em agredir crianças nem de excluí-las do ambiente adulto, mas limites precisamos dar. Se isso não for feito, temo pela geração que está sendo formada. Uma geração sem noção do que são seus direitos e deveres. Uma geração ressentida por crer que o que lhe é devido não foi entregue. Não há dívidas. Construímos nossa história e nem sempre o percurso é suave e o final feliz. A criança precisa entender que sem esforço e vontade não se chega a lugar algum.

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