quarta-feira, janeiro 27, 2010

IMPRESCINDÍVEIS



– Sem o Filipe e o Ricardo não dá pra começar a pelada.
– Ricardo já está aí. Alá a bola dele. Foi à padaria tomar um sorvete.
– E o Filipe?
– A mãe dele disse que ele só vem depois de estudar.
– Filhinho de mamãe, mas sem ele não tem jogo.

A Rua Alberto Limonta tinha configuração hostil aos adeptos de uma boa pelada. E logo ela havia escapado do intenso tráfego que invadia as outras ruas do bairro. Sem espaços para um campinho, a garotada se virava no velho futebol de rua.
A Rua começava com ladeirinha leve e terminava em subida inclemente. Era comum os infelizes que moravam lá no alto, antes de começar a escalada, soltar uns dois putaquepariu e três ou quatro cacildas.
Entre a tênue subida e o paredão, havia 50, 60m de planície. Infelizmente, quis o Tinhoso que no metro 20 do paraíso morasse d. Rosaura. A feladaputa da velha tinha dois prazeres na vida: rasgar as bolas que caíam em sua casa e atirá-las rasgadas na rua.
Em 2010, d. Rosaura já estaria morta. Um dos peladeiros já haveria providenciado sua ida para a cidade dos pés juntos. Naquela época, no entanto, a molecada se conformava em malhar a velha, transmutada em boneco, no Sábado de Aleluia. Era o judas oficial da rua. D. Rosaura, era ela em nossas mentes, levava porrada até as entranhas de algodão saírem. Depois a queimávamos. Antes, por alguns dias, o boneco ficava exposto no poste, com o nome da velha seguido de qualificativos criativamente desabonadores.
Soluções havia. Jogávamos no começo da rua, muitas vezes. Início de partida, atacar subindo a ladeira era tranquilo. Dez minutos de jogo e parecia que os atacantes escalavam o paredão do final da rua. Já quem atacava para baixo ganhava velocidade vertiginosa. Quase sempre os bolivianos venciam.
No platô, jogávamos a pelada de sábado. À tardinha, fazíamos dois times de 8 e jogávamos à exaustão ou até um grosso atirar a bola além dos muros da velha aloprada. A bola caía dentro da casa de d. Rosaura e minutos depois voltava retalhada.
Perdíamos duas a três bolas por mês. Hamilton, certa vez, quase agrediu a velha. Por causa dela, seu prestígio com a rapaziada andava baixíssimo. As últimas três pelotas foram isoladas por ele. No rachuncho para comprar bola nova, o grosso perpetrador do crime de enviar a gorduchinha para o colo da velha sempre entrava com a metade do valor. Justíssimo, então, ter Hamilton quase agredido a anciã dentro da padaria. Sorte da retalhadora o fato ter-se dado em hora de pão quentinho. Muita gente esperando a bisnaguinha, muita gente para segurar o galalau enfurecido. Daquela a velha escapou.
Quase ao mesmo tempo chegaram dois novos moradores na rua: Filipe e Ricardo.
Ricardo morava no casarão do início da rua. Nós o víamos como um milionário. Garoto bacana, bom jogador, excelente amigo, brigava bem e, principalmente, era um mão-aberta. As bolas passaram a ficar por conta dele. Nunca mais precisamos comprar redondinhas. Até o Hamilton voltou a jogar.
O inconveniente é que, às vezes, um ignorante rifava o balão de couro logo no começo da pelada. Como ninguém mais precisava comprar bolas, a velha cautela do jogo mais suave nas imediações da casa maldita foi pras cucuias. Antes os zagueiros se preocupavam em virar o corpo para porrar a preciosa em direção oposta à do antro da devoradora. Agora, jogavam como odvans: chutavam para onde apontava o nariz. Por mais perdulário que fosse, Ricardo não punha outra bola em jogo no dia de tragédia. Só na próxima pelada. E até isso um dia acabaria, intuíamos todos.
Filipe chegara à Rua menos de um mês depois de Ricardo. Não se entrosou com ninguém. Quando fomos batizá-lo, quase a mãe dele chamou a polícia. “Se encostarem um dedo no meu filho, mato um”. Ninguém duvidou que ela mataria um, dois, três... Quantos fossem necessários.
Enquanto Ricardo era adorado, por Filipe nutríamos indiferença. Ele, por sua vez, não se preocupava em fazer amizade com ninguém. Filho único, a mamã o paparicava de maneira ultrajante. A irmã, um ano mais nova, era um petisco que todos sonhávamos saborear.
Não só esses eram os defeitos do Filipinho. Bom, a irmã entra na coluna das qualidades. Voltemos ao defeito, o mais grave: era menino de recados de d. Rosaura. A mamã dele conhecia a velha de outros enterros. Vivia na casa da megera. Filipinho comprava pão, buscava cerveja preta e escolhia frutas para a bruaca, sempre na maior alegria. Até a feira o pilantrinha ia com a vovó, no maior carinho. Como gostaríamos de cobrir Filipinho de porrada.
Em bela tarde outonal, os dois irmãos resolveram apreciar a pelada que ia animadíssima. Ricardo já havia mandado duas ou três letras para a menina. Ele era o mais experiente entre todos nós. A fofinha, lá pelas tantas, pediu: “Por que vocês não deixam meu irmão jogar?” Todos fingimos que não ouvimos. Ricardo, não. Cedeu sua vaga, cavalheirescamente, e foi postar-se ao lado da uvinha. Hamilton irou-se pela entrada de Filipinho e muito mais pela ousadia de Ricardo. Ele anunciara para todos o seu interesse na menina. Fizera reserva. Ricardo não respeitou. Tão puto ficou que relembrou os velhos tempos e rifou a bola dentro da casa de d. Rosaura.
Antes que reagíssemos, Filipinho correu em direção a casa e, com a familiaridade de um molequinho de favores, foi entrando. Segundos depois saía com a bola. A primeira a sair viva da mansão ignominiosa.

– Ó, o Filipe tá vindo.
– Pô, Filipe já estamos te esperando há mais de meia hora.
– Minha mãe tava passando a lição comigo. Vou comprar pão pra ela e a gente começa.
– Aí, cunhado, vou lá com você.
– Hamilton, pare com isso. Se minha irmã te escuta...

Um comentário:

Hanna disse...

Muito,muuuuito bom!
Bjs.