quinta-feira, janeiro 07, 2010

GONZAGA



Gonzaga era querido na comunidade. Cara alegre, prestativo, integrado.
Pau pra toda obra, apesar de na comunidade as casas serem todas de tijolo, porque esse negócio de barraco de madeira já foi.
Mas, como apregoa Pierre Cliché, a vida é uma caixinha de surpresas. O bom Gonzaga teve um colapso e finou-se.
Consternação total. Gonzaga deixou mulher e uma filha de 12 anos, Giovana.
Cerqueira, presidente da Associação de Moradores da comunidade acercou-se de Sheila, a viúva, e propôs:
– Sheila, conheço o Gonzaga há mais de 30 anos. Eu o trouxe pra cá. Fui padrinho do casamento de vocês. A Associação paga enterro e qualquer outra despesa, mas você tem de permitir que eu faça duas coisas: chamar a primeira mulher dele com os filhos e convidar o pr. Bocaiúva para fazer a cerimônia fúnebre.
– Eu aceito, até porque acho que não é momento de rancores, mas gostaria que o enterro fosse no Jardim da Saudade e que a Associação providenciasse ônibus para levar as pessoas da comunidade.
– Vou alugar três ônibus. O Gonzaga era muito querido e respeitado.
O enterro no dia seguinte reuniu mesmo uma multidão. Os três ônibus foram abarrotados. O pr. Bocaiúva chegou a comentar com Cerqueira:
– Que bênção, Cerqueira. A Palavra será pregada e, certamente, não voltará vazia. Deus vai me usar, poderosamente, para falar a esses descrentes e obra magnífica será realizada. Tudo para honra e glória do Senhor.
– Não seria melhor fazer a cerimônia aqui na Associação, pastor?
– Vamos fazer no cemitério, lá haverá mais almas. As daqui e as dos parentes do primeiro casamento.
Sol escaldante, multidão espalhada pelo gramado do cemitério e o pastor falava, falava e falava. Não contente de só ele falar, abriu espaço para que quem desejasse dissesse alguma coisa sobre o irmão Gonzaga. Irmão por conta do sacerdote. Gonzaga jamais havia pisado em igreja evangélica ou católica. Era conhecido filho de Ogum.
A segunda mulher de Gonzaga aproximou-se do microfone:
– Todos sentiremos muita falta do Gonzaga. Um homem que conquistou toda a comunidade com sua simpatia, seu sorriso, sua prontidão. Gonzaga estava sempre bem-humorado, feliz. Mas, meus amigos, é bom que se diga que nem sempre foi assim. Há 15 anos, quando nos conhecemos, Gonzaga era infeliz, amargurado, torturado. Graças ao supremo criador de todas as coisas, ele viveu feliz os seus últimos anos.
O pr. Bocaiúva olhou para o público e viu uma mulher se aproximando. Cerqueira sussurrou em seu ouvido: “É a primeira mulher do Gonzaga”.
A lourona trovejou:
– Fui casada com o Gonzaga por 16 anos. No início de nosso matrimônio tínhamos uma mercearia que existia há mais de 40. Herdei-a de meu pai e nela trabalhei desde a meninice. Quando me separei do Gonzaga, a mercearia estava falida. Depois de separada comecei outro negócio, que vai muito bem. Tenho dois filhos na faixa dos 20 anos. Criei-os sozinha. Nunca tive ajuda do Gonzaga. Acabei de ouvir que ele vivia feliz. Como, se estava sempre me pedindo dinheiro emprestado, reclamando da vida, suplicando preu aceitá-lo de volta porque não aguentava mais morar na favela.
A essa altura, o pr. Bocaiúva sentiu que a coisa ia desandar, mas não negou a palavra ao Cerqueira.
– Meus amigos, todos sabem que conheço o Gonzaga há mais de 30 anos. Conhecia-o quando era casado com a Clotilde. Eles se separaram por circunstâncias da vida. O que não podemos é lançar lama na reputação de um homem que deu a vida pela comunidade.
Silvério pediu o microfone e o pr. Bocaiúva não sabia mais o que fazer.
– Amados, em primeiro lugar, um reparo. É inapropriado chamarmos de irmão um homem que não pertence a nenhuma igreja cristã. Em segundo lugar, gostaria de perguntar o que, exatamente, o Gonzaga fez pela comunidade? Era um camarada simpático e que cumprimentava a todos. Só isso. Prestativo? Nunca soube que ele socorreu alguém, jamais o vi participando dos mutirões. Lembro-me dele participando das peladas, reunido no boteco assistindo jogo pela TV e gritando, ébrio, em todos os gols do Botafogo: “Esse time me faz sofrer, mas é também o que me faz aturar esta vida de merda”. Perdoem-me por usar esta palavra torpe, amigos.
O pr. Bocaiúva percebeu que tinha de dizer alguma coisa. O quê?
– Meus amigos, a quem honra, honra. Temos de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Afinal, não é a Bíblia a palavra inerrante de Deus, nossa regra de fé e prática? Acalmemo-nos, então, e prossigamos com o enterro.
O filho mais velho de Gonzaga tomou o microfone do pastor e falou exasperado:
– Meu pai sempre traiu minha mãe. Roubou-a. Ela, não sei por que, sempre o amou. Não o aceitou de volta por nossa causa, os filhos. Ele já a havia levado à falência. Ela fez questão de vir aqui. Nós viemos por causa dela. Ele era um canalha.
O pr. Bocaiúva arrependia-se por ter começado aquela bagunça.
– Me deixa falar.
Era a filhinha de 12 anos de Gonzaga.
– Papai não era nada disso que vocês estão dizendo. Ele me ajudava com as lições de casa, me dava conselhos, me perguntava sobre como tudo ia no colégio, sempre ligava para saber se eu precisava de alguma coisa. Era o melhor pai do mundo. Todas as noites, depois que mamãe dormia, ele ia ao meu quarto e beijava minha boca. Beijo de língua.

Um comentário:

Marcelo Belchior disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk...hahahahahahhahahahhaha.... essa eu ainda não havia lido... rsrsrsrsrs... Grande irmão Gonzaga!!! kkkkkkkkk